quarta-feira, agosto 19, 2009

A peça

(Sozinha, em palco, sentada numa cadeira. Não se vê mais nada. Apenas ela, com uma única luz a incidir sobre si, um único foco. Não há música de fundo, não há mais qualquer tipo de som. E a voz ecoa na sala quase vazia. O público, esse, está nas últimas filas. Uns bocejam, outros dormem, outros prestam genuína atenção, outros ouvem sem se dar ao trabalho de pensar no texto, outros observam com estranheza, outros sentem pena pela fraca venda de bilheteira. E ela começa... )


"É assim, é assim. A minha vida é assim e não há nada a fazer. Estava escrito, certamente, estava destinado e não havia como fugir. Estava programado nas linhas da mão que ia perder o norte, que ia ser forçada a mudar tudo da forma mais abrupta. Eu estava ali, num determinado sítio, e agora acordo noutro, completamente diferente. O tal tsunami, terramoto, o que seja, arrasou com tudo e levou-me para outro lugar, para começar de novo mas sem qualquer tipo de base, num território desconhecido, sozinha, a ter que me agarrar ao que posso para tentar dar algum sentido, alguma organização à vida. É assim. E parece que não acabou. Há-de haver mais coisas a acontecer antes que se possa fechar o pano desta peça completamente surreal.


Muitas vezes penso que foram as minhas atitudes que me trouxeram para este lugar. Muitas vezes tenho a sensação que mexi, sem saber, em algo em que não devia ter mexido e que isso despolotou uma reacção no universo que o fez virar sobre si mesmo e mudar completamente o curso das coisas. Num segundo, um segundo definitivo. Um segundo em que dei um mínimo toque numa alavanca que não sabia estar ligada a coisa alguma mas que afinal controlava tudo o que me rodeava. Mexi onde não devia. Irritei os deuses, toquei na base do castelo de cartas. Sem querer, sem a mínima noção das consequências.


E agora? Pois agora há que lidar com o que se segue, seja lá o que for, enquanto se tenta emendar o que pode ser emendado e construir de novo o que caiu por terra. Sempre com a devastadora noção de que nada será como antes. "


(O pano não fecha mas o público sabe que aquele acto terminou. Sai para intervalo que não se sabe quanto tempo vai durar. E ela mantém-se em palco, quieta. Ela, a cadeira e o foco. À espera que alguém escreva o texto que deverá dizer a seguir.)

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