Nem pensei. Na verdade, não havia nada que pensar, havia apenas que agir. Só lentamente me fui dando conta, um pedacinho de cada vez, dentro de um minuto de cada vez. À medida que me ia aproximando, por um caminho que não decorei - nem na altura, nem agora -, emudeci sem dar conta e ausentei-me para o meu mundo interior que começava a fervilhar de memórias soltas. Como confettis presos em caixa fechada à pressão e que finalmente rebenta: momentos, sons, imagens, expressões. Soltos, desprendidos uns dos outros, caíam em mim como chuva grossa. Nunca mais lá tinha voltado nem nunca lá tinha estado antes mas tinha a absoluta certeza que me poderiam ter vendado os olhos até ao momento de chegar: eu saberia de imediato onde me encontrava.
Birkenau. O "meu Birkenau". Os portões de ferro ao fundo. A alameda que lá me levava. As duas imagens, a sua sobreposição, talvez até a sua fusão, e eu a absorver-lhes o sentido.
Silêncio, de dentro para fora. Ouvindo as vozes que me rodeavam mas ao longe, lentas, distorcidas pela minha presente ausência, fincando cada passo, olhos pregados no edifício que se ia agigantando à minha frente. Momentos, sons, expressões. Pedaços de álbuns de memórias que o meu olhar ia colando às imagens reais, físicas, que se me iam deparando. Ali, junto àquela parede; acolá, no acesso com parede de tijolos; aqui, no pátio; lá dentro, na sala. Rostos, palavras trocadas, cumprimentos, pessoas, notas soltas, olhares que me olhavam de novo: clarões que se sucediam à medida que ia percorrendo aquele espaço.
No pátio, por ter evitado a sala, tentava manter-me hirta ao mesmo tempo que as memórias me sacudiam, embatiam em mim vindas de todas as direcções. No pátio, nos longos minutos que lá permaneci, voltei atrás no tempo e morri mais uma vez.
Saí. Ou melhor, fugi. Desculpei-me e fugi sem olhar para trás. O ritmo dos passos ao ritmo das lágrimas que se soltaram assim que me vi sem ninguém à volta. Fugi daqueles portões, daquele pátio, daqueles tijolos, percorri a alameda num só sopro e só parei quando, ao espreitar por cima do ombro, o "meu Birkenau" já não me avistava.
Quando voltei, fi-lo lentamente, engolindo em seco a humidade que ainda restava na cara, de queixo erguido, respiração controlada, figura hirta de alma ausente, e juntei-me novamente aos demais. Mais sóbria, os confettis pareciam ter finalmente pousado e a minha cabeça voltava novamente ao vazio ao qual recorro quando só o vazio permite endireitar as costas e secar os pensamentos. Percebi, nesse momento, que não tinha qualquer memória da vista para onde desemboca o pátio nem da existência de uma sala contígua. Percebi que nas longas horas que lá passei antes simplesmente não os vi. E percebi que não tinha qualquer memória do que tinha acontecido depois. A lógica diz-me para onde fui mas não há fragmento de recordação de como o fiz, com quem, o que aconteceu quando cheguei. Nada. Absolutamente nada.
Ainda cá fora, porque a última memória a ir-se embora foi a do som do alçapão que se fechou depois de ter engolindo parte de mim, aguardei o momento certo: a despedida impunha-se, a sala aguardava-me, o som - que não seria o meu mas seria o mesmo - já teria acontecido. O abraço, meu e dele, de quem o recebia e de quem o dava, disse tudo. E eu apenas sussurrei qualquer coisa.
De volta ao resto do dia e à vida que segue, o ar fresco soube-me bem. E à medida que o meu corpo se afastava do portão e dos meus carris feitos chão, a voz retornou ao seu devido lugar rompendo, a espaços, a mudez cerrada. Aproveitando a brisa que refrescava corpo e alma, tentei ainda buscar alguns elos de ligação entre os vários pedaços, algumas memórias que não se tinham apresentado, mas algo me disse que era escusado e - mais do que isso - desnecessário. Afinal, só não resiste ao tempo e ao ácido sulfúrico da memória selectiva o que não tem verdadeiramente expressão ou o que, tendo, não contribui em nada para nada mais. E assim sendo, não merece ter lugar em mim.
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