Eu. Um velhote de pança generosa, vesgo e de mãos atrás das costas, a la "Guarda Serôdio". Um lugar de estacionamento na zona das Avenidas Novas. Fim de tarde chuvoso.
Podia assim começar uma linda história de amor caso a minha modesta simpatia por pessoas de mais idade e até com olhos tortos roçasse o espectro amoroso mas não, felizmente para mim... Por isso, o que começou a partir daqui foi uma curiosa discussão a parar o trânsito atrás de mim porque o velhote de pança generosa, vesgo e de mãos atrás das costas - ao qual a partir de agora me irei referir como "o vesgo" porque é mais curtinho e um tanto ou quanto desagradável e é o que ele merece - resolve que tem todo o direito de guardar com o seu corpanzil o lugar vago para um outro carro qualquer do seu conhecimento, que deveria vir no início da rua.
A princípio não percebi bem, até porque estava de auricular "em punho" à conversa com C. (que passou os cinco minutos seguintes a rir do outro lado ao ouvir o que se foi desenrolando) mas resolvi ignorar os gestos de polícia a mandar seguir o trânsito, ou seja, e naquele momento, a mandar seguir a mim. Aproximei o "focinho" do carro e pus-me eu lá dentro a fazer o mesmo, como quem diz: caríssimo, desvie-se o senhor que eu quero estacionar. Mas ele continuava... esbracejava, esbracejava (segue, segue...) e não saía do lugar.
Pedi um minuto ao meu interlocutor telefónico e abri a janela no sentido de perceber qual era a ideia porque me parecia irreal que alguém no seu perfeito juízo achasse que podia guardar lugares públicos de estacionamento... mas assim era...
Ó que azar. Ó que azar o do vesgo que me apanhou no fim de uma segunda feira em todo o seu esplendor de segunda feira, já atrasada para outro compromisso, cansada, farta de andar às voltas à procura de lugar e munida à nascença de intolerância perante arbitrariedades. Ó...
(O sui generis diálogo que se segue é verdadeiro e teve testemunhas para além de mim e do vesgo alucinado):
- Peço desculpa mas... importa-se? Eu quero estacionar aqui...
- Ah mas não pode, eu estou aqui a guardar lugar para o "meu" que vem já ali...
- Ah mas não pode, eu estou aqui a guardar lugar para o "meu" que vem já ali...
- Desculpe mas o senhor não pode guardar lugares...
- Não posso porquê?
- (incrédula, de boca aberta e a tentar não alterar o tom de voz) Porque não pode! O lugar é público, não é seu portanto é de quem chegar primeiro e o apanhar.
- Então, cheguei eu!
- (cada vez mais incrédula e já com vontade de partir para o atropelamento) Mas o senhor não é um carro...! É uma pessoa e não tem o direito de guardar lugares no meio da rua. Portanto, se não se importa, saia porque eu vou estacionar.
Este diálogo repetiu-se umas duas ou três vezes. Eu a dizer que não pode, o vesgo a manter o desplante com o seu "mas porquê", eu a vociferar a explicação e a esvair-me de paciência.
Finalmente, a criatura percebeu que eu não ia sair dali. Finalmente, percebeu que a minha viatura se aproximava cada vez mais dos seus pézinhos e que a fila de carros estava cada vez maior e que o "seu" não ia ficar com aquele lugar, desse por onde desse. Continuando a cuspir impropérios, foi-se afastando não sem antes acrescentar "eu estou-me a ir embora porque eu quero, ouviu?, porque eu quero!!" sendo que só me limitei a insinuar que, da próxima vez, a polícia também seria metida ao barulho, podia ser que o senhor não ficasse para lá a "querer" sozinho e que as autoridades o acompanhassem nesse seu desejo...
Fechei a janela, com o vesgo a chorrilhar disparates de dedo apontado ao meu vidro, estacionei, saí e fui à minha vida. O vesgo continuou às voltas na rua, a tentar apanhar outra vaga para lá se "plantar" e acabou por conseguir. Da mesma forma, esbracejou mandando seguir e... os carros seguiram...
Pergunto-me o que será mais preocupante... se a falta de noção de pessoas como o vesgo ou se a falta de espinha dorsal de quem foi passando. E pergunto-me mais ainda: tenderemos nós, sociedade actual, cada vez mais a dividirmos-nos apenas por estes dois grupos..?
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