quinta-feira, dezembro 19, 2019

Do Natal, das palavras que me tocam sem que esteja à espera, do mergulho que dou nelas e onde me deixo ficar com prazer...

Tolentino já tem a sua Igreja em Roma (e Deus, meu amigo, como o podemos ver, olhar e tocar?) 

1. O Cardeal Tolentino de Mendonça, reclinado perante o Papa Francisco, perguntou-lhe: “Santo Padre, o que me fez”. Naquele momento em que o Papa, na Basílica de São Pedro, cumprimentava cada um dos 13 novos cardeais, o novo bibliotecário do Vaticano sentiu o tempo parar. Francisco respondeu que ele era a poesia. E seguiu. 

 2. Já passaram mais de dois meses, o tempo infelizmente não trava como nos momentos de grande jubilo interior, continua sempre. E anteontem, Tolentino de Mendonça tomou posse da sua Igreja em Roma, a Igreja dos Santos Domenico e Sisto que é parte do complexo da Universidade de São Tomás de Aquino. Fica no Largo Angelicum, em Roma, e os dominicanos são os seus guardiões. 

 3. O Cardeal Tolentino de Mendonça, o rapaz pobre de Machico, filho de um pescador, continua e escrever poemas. E a ser um habitante do silêncio… apesar de toda a balbúrdia, de todo o chinfrim do mundo, ele continua a ser a criança que atravessa o mundo. Conhecem o meu poema preferido entre todos os que escreveu? 

“Travessia da infância 
Quietos fazemos as grandes viagens 
só a alma convive com as paragens 
estranhas 

lembro-me de uma janela 
na Travessa da Infância 
onde seguindo o rumor dos autocarros 
olhei pela primeira vez 
o mundo 

não sei se poderás adivinhar 
a secreta glória que senti 
por esses dias 

só mais tarde descobri que 
o último apeadeiro de todos 
os autocarros 
era ainda antes 
do mundo 

mas isso foi depois 
muito depois 
repito” 

4. Tolentino já tem a sua igreja em Roma. Era bom que as coisas fossem assim tão fáceis. Feitas de regras humanas, de procedimentos, vamos para aqui porque está destinado por isto ou por aquilo. Mas não é, a viagem é outra. Entramos e não sabemos para onde o autocarro nos leva. O filho do pescador, que um dia se poderá tornar um pescador de homens, está em plena viagem. Como nós. Como tu. E eu. Estamos no comboio sem saber o destino ou as estações onde ele nos pode deixar ou abandonar. 

5. E Deus, Tolentino? Como o ver se somos cegos? Como o ouvir se somos surdos? Como lhe tocar se os nossos dedos continuam sem sensibilidade? E o Natal, Tolentino? O que é este barulho que para aqui vai? Escrevo-te daqui para aí. Espero que te chegue, à tua igreja talvez, em Roma, num largo movimentado de jovens cobertos de sonhos. Um dia escrevi um texto sobre Deus, pensei em ti quando o coloquei por palavras. 

“O meu Deus não tem voz grossa, tem a que imagino. O meu Deus não me castiga, oferece-me liberdade. O Meu Deus não me chantageia, acredita na responsabilidade. O meu Deus não me corta o desejo, recomenda-me uma canção. O meu Deus dança comigo quando danço sem par. O meu Deus tem humor, escuto-o e sei do que falo. O meu Deus está aqui, se me virar rápido ainda o vejo. O meu Deus é um pressentimento, uma promessa, é o bem e o mal, sou eu nos piores dias. É esperança e virtude. O meu Deus acredita em mim.” (Em Amor, Oficina do Livro, 2016) 

É isto, Tolentino. Tu és a poesia. Um Santo Natal 
Luís Osório

Sem comentários: