terça-feira, dezembro 29, 2020

Expiação

Já demos a volta ao mundo que é a minha cabeça. E embora não nos tenhamos detido em todos os seus recantos o mesmo número de conversas, é justo considerar que já estamos perante um retrato bastante fiel das minhas viagens até este ponto. Mas sentia que, em cantos recônditos, adormecidos entre pedras de uma qualquer cascata do meu planeta interior - daqueles que vemos nos filmes, que existem por trás da queda de água e onde só chega quem não teme não ver tudo às claras - permaneciam intocados alguns nós que, de quando a quando, se sentiam sob a pele. São nós antigos, não necessariamente com relação uns com os outros mas claras opções de esquecimento até ao dia em que não fosse mais possível esquecer. 

De há uns tempos para cá, e talvez por não sobrar muito a requerer remédio ao de cima, têm-se chegado à frente e feito por me recordar que existem. E, mais do que existirem, que magoam, ainda magoam, e talvez que nunca possam não magoar. Isto é, enquanto não forem desatados ou, pelo menos, afrouxados.

Convenceram-me, tinha chegado a hora. E, de forma estudada, organizei-os cronologicamente e resolvi-me a abordá-los. Sentámos-nos frente a frente, copo de vinho tinto na mão, respirei fundo e mergulhei no tempo até ao seu tempo, até aos primórdios da sua história, o quê, o quando, o como, até ao que são ainda para mim. Chamei-lhes "culpas" e tenho vindo a dissecá-las como boa cristã que se calhar até quero ser.

O que notei primeiro foi a clareza com que me ocorreram pormenores que julgava já ter esquecido ou, tão pouco, nunca ter fixado, o que acabou por torná-los vívidos em mim de uma forma pouco ortodoxa. Por vezes, juro que me assustei com a sua definição tão demarcada mas tão pouco própria do que o tempo já devia ter corroído, deformado, amarelado. Dei por mim a ter que parar por vezes uns segundos para então os conseguir encaixar na narrativa pré preparada enquanto fechava a boca aberta de surpresa: "Nunca mais me tinha lembrado disto...".

Mas avancei, conta a conta, desfiando os seus rosários. Tinha que lá ir, tocar-lhes, de dedo espetado onde doesse mais, de dedo espetado que acusa, e falar-lhes em voz alta, falar-me em voz alta. Sem subterfúgios. A realidade como foi e como é, as culpas escancaradas sem nada que lhe tapasse as partes pudendas.

Encontrei-me de novo comigo, com eus que até já me tinha esquecido que uma vez existiram. Vi-me a cara, as expressões, de ilusão nos olhos, a ingenuidade, a santa ingenuidade. Vi-me coitada, pequena, nada preparada para lidar com o que me aparecia pela frente, cheia de certezas que fui buscar a lugar nenhum. Vi-me a querer fazer bem, melhor, mais, a tentar seguir em frente e a tropeçar nos meus próprios pés. Vi-me demasiado nova a braços com pesos pesados de gente grande e demasiado velha para poder voltar atrás. Vi-me a magoar, a fazer sofrer e vi-me a tentar salvar-me de submergir. E reconheci as dores que daí advieram e que se deixaram ficar comigo até agora. 

Culpa. Há lá coisa mais católica apostólica romana...

Não foi tudo de uma vez. O que achava que relatava em três pernadas acabou por levar um pouco mais, cada pormenor puxando pela mão do outro, cada pedra removida a revelar mais qualquer detalhe que afinal ainda por lá andava e que ajudava a compor o ramalhete, mas lá repassei as cenas e ordenei em fila os acusados para que se expusessem de uma vez e de uma vez se oferecessem à expiação. Sem julgamento, que esse eu já tinha feito há muito.

Não foi tudo de uma vez mas o sopro com que me apercebi do quão simples era desmontar as minhas acusações quase de uma vez só me deitou ao chão. Ali estava eu, corpo em apneia, oferenda às balas, pronta para receber os merecidos castigos, quando sou obrigada a descer do alto da minha responsabilidade, arraigadamente e religiosamente assumida, e a ver-me tão somente inocente. Tão somente... um pequeno pormenor, um simples substantivo foi o suficiente para, em poucos segundos, se desmontarem anos de laborioso investimento na construção dos megaprocessos contra a minha própria pessoa: intenção. A culpa só o é de verdade quando tem por base acto com intenção. E, a bem da verdade, dessa intenção eu nunca sofri...

Ali e assim fiquei eu, desconcertada, aparvalhada, a sentir uma leveza que me desconjuntava de tão habituada que estava ao peso nos ombros. Ali fiquei, sem perceber muito bem como me interpretar e como me definir agora. Agora que já não era culpada, agora que afinal não tinha nada para expiar... quem era aquela que agora era eu..? 

Não vou dizer que renasci. Não vou dizer porque ninguém renasce três vezes e eu, seguramente, já renasci duas. Mas talvez me tenha renovado. Continuo a pedir desculpas quando adormeço porque não deixo de sentir o lamento por quem por mim se doeu mas sou agora dona de uma paz que não conhecia. 

E, tenho que dizer, é uma paz nova, que se me encaixa bem...

quarta-feira, novembro 18, 2020

Perfil

“Travel is fatal to prejudice, bigotry, and narrow-mindedness, and many of our people need it sorely on these accounts. Broad, wholesome, charitable views of men and things cannot be acquired by vegetating in one little corner of the earth all one's lifetime.”

Mark Twain

quarta-feira, outubro 14, 2020

"Parabéns! Olha, estava aqui e, de repente, vi no jornal que fazias anos hoje...!"

Há pessoas que não nos fazem falta logo que partem. No nosso íntimo, continuam lá, como sempre, no nosso íntimo poderemos sempre pegar no telefone e ouvi-los do outro lado. Até ao dia em que o fazemos, de facto. Até ao dia em que ninguém diz nada da outra ponta da linha, até ao dia em que, ao contar cadeiras para o almoço de família, nos damos conta que teremos que pôr menos uma à mesa. Mas não é logo. Uma vida inteira de presença não se esvai de um momento para o outro. As memórias de uma vida inteira continuam a ser presente, a fazer parte, até ao dia em que a presença não acontece, até ao dia das cadeiras...

As cerimónias dão-se, as flores oferecem-se, as viagens fazem-se, as liturgias ouvem-se mas algo cá dentro se recusa a integrar o que vê. Assiste mas não sente. Há-de chegar o momento...

quinta-feira, setembro 24, 2020

quarta-feira, julho 22, 2020

Das maravilhas que se encontram por acaso...

"Toda a gente é um exército de salvação!
Vêm com a sua charanga salvar-nos de nós próprios, amigos, amantes, parentes, para não falar nas esposas.
Toda a gente nos quer dar esmola.
Só ninguém nos quer nus,
só ninguém percebe que uma só coisa nos podem dar realmente, é olharem para a nossa alma nua e dizer:
- Está bem, assim seja.
Então seria o amor"

Adolfo Casais Monteiro
Estrangeiro Definitivo
1961

A contar pauzinhos...


sábado, julho 18, 2020

C.P.F. ou não há coincidências...


Passado da minha geração para a seguinte. 

Clube dos Primos em Férias, inaugurado num remoto Verão dos anos 80, para entreter quatro almas pequenas que não conseguiam estar quietas, naqueles dias escaldantes de Agosto em vila do interior. 

Quando não havia idas ao rio, havia CPF dentro de uma tenda no quintal. Com direito a hino da autoria do “tio Carlos” e bandeira com símbolo (na altura não se dizia logótipo) pela pena do “tio João”. 

A mais nova de nós herdou a memória que faltou aos outros três e passou a história à sua prole: letra, música, tudo. E hoje, justamente hoje, as almas mais pequenas de agora passaram-na para o papel...


"Uma tenda, uma bandeira
E as férias vão começar
Somos primos na brincadeira
Todos têm que alinhar. 

2x
Ninguém se balda,
Ninguém é chefe
Todos trabalham
No C.P.F."

Onze

Ainda há dois dias me imaginei a correr para o teu colo...

quarta-feira, junho 10, 2020

terça-feira, junho 09, 2020

Perfil

I’ve Retired from the “Good Girl” Game. I’m an Unapologetic, Difficult Woman 

“She was done battling with herself, trying to change who she knew herself to be. She was Done."

She’s a bitch with a conscience who is learning to stop apologizing her sanity away. Because she used to be an oh-so-apologetic, “sorry for not being a good little girl,” kind of woman. And, sometimes, she still gets a reflexive and self-protective amnesia when the good girl hijacks the inner bad bitch and pulls her through a backdraft of primal fears. Sometimes, her traumatized and punishment-expecting body reacts to her power with shame, self-sacrifice, and other somatically stored reflexes of subjugation. It’s just that her inner bitch finally woke up out of self-preservation, and she has had more than enough oppression for lifetimes. Because all the bad bitches in her ancestral line finally have a forum for their dissent, and they are as loud as a chorus of Furies.

The truth is also that the good little girl within her is still alive, even as she fights her well-conditioned death through her inevitable growth. She watches in terror as we defend ourselves, speak our truth, or are brave enough to stand up and out in a world that confuses assimilation with success. Because she is learning how to become a good woman, and the world often tells her that’s just not safe.

She swoops in with judgments and shame to rescue us from the risk that non-compliance represents to our actual well-being. In a world that was only just waking up from the oppression of the feminine, and now appears to be deep diving back down into its dark ages. But at her core, in her deepest self beyond her body and its many manifestations of mind, she’s not fucking sorry. She’s not sorry for refusing to take your shit for you, anymore.

She’s not sorry for protecting herself from a world where being a difficult woman means bracing herself, either in 100 subtle movements a day, or one massive explosion of her force, against those who seek to control her through games of violence. Who demand her complacency and inferiority. Who ask, in their varied attempts at control, that she go back to sleep and play small to appease their malignant egos. She’s not sorry for cutting you out of her life and never looking back, when she sees you are an active part of that world and refuse to take responsibility for your own behavior—regardless of your gender identification. Because she is done playing your scapegoat, either way, or taking responsibility for your chosen downfall. She’s not sorry for making too much noise, or making waves, big and small. Especially not when you don’t like the waves she’s making. Because she knows the intentions of her pure heart and that all this really means is you’re exactly the one who is not fucking supposed to like them. For your disapproval and condemnation has only become a mark of her victory.

She’s not sorry that your change and growth aren’t easy or comfortable for you. She’s here to deliver the blow of reality to your complacency in the crimes against her humanity, and the humanity of others, too. Because she knows that it takes a loving and courageous woman to speak her truth and hold others accountable in the face of terror.

She’s unapologetically here to start fires within the massive hearts of those who are also tired of being small, acquiescent citizens. Because she’s tired of the unsafe and insane world we are all a part of creating. The one where people with no access to their conscience get to dictate the conditions of our lives and our planet through a reign of terror, both real and imagined.

She’s not sorry because she’s too busy summoning the Furies within her and channeling them into her superpower to help rebalance that world. She doesn’t have time for your judgments or the arguments you make that your privilege isn’t real so that you can keep it. She’s too busy tearing down the walls the world taught her to build between her and her strong bitch of a self, brick by brick, and refuses to acknowledge the ones you want her to resurrect in their downfall. Yes, she’s a real bitch to your agenda, and no, she’s not fucking sorry about it. Because she’s retired from the “good girl” game. That one where you attempt to belittle her and grind her down with a thousand tiny cuts to her beautiful psyche. The one where you think her body belongs to you. Where consent, which should be logical, is an inconvenience because it makes you think about your fucking actions and judge yourself. Because she knows that just maybe, you are the one who is supposed to be. She no longer has room to carry your shame for you within her own gorgeous conscience. Because it’s not actually her job to teach you how to be a respectful human being. It’s your responsibility to learn how to become one of your own volition, and she made a vow that she wouldn’t fall prey to that trap ever again. That she’d rather be called a crazy bitch than let you get away with disrespecting her, anymore.

Because, let’s face it, she tried to be a nice little “good girl” and you just stayed the same. Now, she’d rather be difficult than deal with the true difficulty of enduring your myriad abuses, regardless of whether you choose to become aware of them or not. Now, she is deeply unapologetic for her inner bitch’s existence and rightful place in this world.

She is learning to be proud that she has the ability and the courage it takes to stand up and step into the good woman she truly is. Which she does, over and over, every time you remind her of it by calling her a “bitch.” For whether you do so in an outright manner or with your quieter forms of disapproval, she’s starting to enjoy the word as she transcends your small-minded ego."

Janelle Brown
www.elephantjournal.com

segunda-feira, junho 08, 2020

Passo #15483632 no sentido da aceitação do "nosso eu" ou lá o que é...

E dou por mim a responder desta forma a uns colegas de trabalho que me pediram para dar uma vista de olhos a uns documentos mas noutra vertente...

"Aviso já que fiz correções aqui e ali... é mais forte que eu... (eu corrijo ementas de restaurante, é este o nível de loucura de que estamos a falar, por isso...)."

terça-feira, abril 28, 2020

quarta-feira, março 25, 2020

quinta-feira, março 19, 2020

Com um pé na quarentena...

No outro dia ouvia: este ano vai ser para esquecer. Pois eu cá acho que não... se soubermos apreender as mensagens que nos está a enviar, acho que é, sim, de reter...

segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Pérolas da porca #49

"Com esta coisa do acordo ortográfico, nunca sei bem o que mudou... "início" continua a ter acento no 2.º "i", não continua...?"

terça-feira, janeiro 28, 2020

Felicidade

Passei a vida toda, a vida que tive até agora, perseguindo o objectivo que sempre considerei o maior: a felicidade. Nesse percurso, a noção que tinha do que ela poderia ser foi-se modificando, aspectos antes considerados primordiais perderam protagonismo, outros - subvalorizados - começaram-se a destacar. A vida deu voltas, por vezes rodopiando descontroladamente e eu, tonta de viravoltas, deixei até, por vezes, de os conseguir sequer deslindar uns dos outros. Houve tempos em que me desacreditei dela, em que a chamei de mentirosa, de falsa esperança, outros houve em que a minha fé se fortaleceu e a esperança voltou a fazer-se ao caminho, de mochila cheia de novas hipóteses às costas. Cometi erros em seu nome, arrisquei em seu nome, desdobrei-me em tentativas em seu nome, até acertei algumas vezes no alvo, tudo em seu nome. Mas hoje, um dia simples, banal, hoje, como noutros dias que já tive a sorte de viver, a felicidade fez-se sentir em mim sem esforço, tão fácil, tão disponível, tão simplesmente humana, a rolar pela cara abaixo à boleia das lágrimas que acabaram por me molhar o sorriso. E hoje tive a certeza que posso deixar de a procurar, já partilho a casa com ela...

quinta-feira, janeiro 23, 2020

sexta-feira, janeiro 03, 2020