quarta-feira, dezembro 14, 2016

Na aldeia









































Quando enterramos um morto de outrem, voltamos a enterrar um bocadinho os nossos. Porque o cheiro a flores nos leva de regresso, porque as cantilenas do sacerdote e as cantilenas repetidas de quem consola e não sabe o que dizer nos espicaçam a memória. Porque.

Mas há um muro invisível que nos separa daquela dor, o nosso muro feito de tempo, de conformismo, de defesas endurecidas, de paz. Porque também existe paz: a paz de sentir, de saber sem saber como, que os nossos mortos continuam a viver connosco. A saudade física a ser colmatada pelas conversas intermináveis que continuam a existir entre nós. Porque não há quase nada que faça que não comente contigo...

Mas o cheiro a flores e a terra lembra-nos da dor que agora vemos nos outros. Não a sentimos da mesma forma mas sabemos que ela explode no coração de quem ficou agora órfão de ser querido. Conhecemo-la tão bem que temos obrigação de tentar amenizá-la em abraços e mãos dadas. Em silêncio. Em apoio. Em olhares e acenos de cabeça. "Tenho que ficar aqui até acabar?" "Não. A dor é tua e és tu que decides quando a queres sofrer noutro lugar." Não há regras, que se lixem as regras. Não há convenções. Há dor e quem sabe dela somos nós.

Na aldeia. O frio do campo enregela os pés. Cheira a lenha a queimar e o nevoeiro chega-se ao pé de mim porque sabe que eu gosto dele. O gato no muro que se deixa acariciar. A caminhada atrás do caixão. A irmandade de colete vermelho a dirigir a procissão. E a jeropiga, legado dele, que se deixa brindar à sua saúde.

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