quinta-feira, abril 05, 2018

And this is Africa...



























Estávamos no paraíso - calor, mar transparente, água de côco - mas, do meu pescoço às minhas pernas, começava a espalhar-se um mal-estar que me pedia descanso. Não, não pedia, exigia, empurrava o meu ser cada vez mais combalido na direcção de qualquer espreguiçadeira que se cruzasse no meu caminho, de um banco, do chão se tivesse que ser... Naquelas circunstâncias era impossível por mais de quinze minutos pelo que não tive outro remédio se não ignorar os arrepios de frio ao sol de 35ºC e começar a viagem de regresso que ainda levaria duas horas e meia. Vamos a isto, há coisas piores, esta parte do barco é mais atribulada mas depois é só sentar-me no minibus do Hotel Pestana e dormir o resto do caminho. Vamos lá!

Escusado será dizer que a travessia daquele mar foi feita tendo em mente um único propósito para além do óbvio destino: certificar-me que não me ia encontrar com o Criador no fundo do Atlântico. Num barco de pesca com pouco mais que a cabine e varões aqui e ali a acompanhar o rebordo de madeira onde nos sentávamos, foi, no mínimo, interessante... Não obstante, permitiu-me reforçar a musculatura dos membros superiores e aprender novas formas de não deixar que o balanço me fizesse afundar o nariz no colete salva-vidas atribuído que, claramente, não era do meu tamanho e já tinha passado por centenas de outras criaturas com hábitos de higiene um tanto ou quanto diferentes dos meus. Ah, resta-me dizer que os braços só se conseguiam agarrar a um varão que estava nas minhas costas...

Finalmente, entro no minibus. O ar condicionado no máximo suga-me os poucos graus positivos que ainda parecia sentir. Percebo, estão 35ºC. Percebo, está toda a gente a escorrer água. Percebo, que remédio. Enrolo-me na toalha, encolho-me no meu lugar bem encostada à janela para me desviar da trajectória do ar vindo do aparelho e preparo-me para dormir. O autocarro arranca com o mesmo gorducho e prazenteiro condutor que nos tinha trazido o que me assegurou que a viagem seria o mais rápida que ele conseguisse. Boa!

Fecho os olhos e respiro fundo enquanto penso na minha cama de hotel: já não falta tudo. Nisto, a rádio liga-se, ok, música, pode ser que não seja má, e começam-se a ouvir Avé Marias em loop. Sábado de Páscoa, transmissão em directo da missa que se está a realizar na Sé. Certo... três quartos da viagem a ouvir o terço... ninguém, absolutamente ninguém se atreveu a pedir ao gorducho e prazenteiro condutor mas também e, pelo vistos, católico devoto e com tamanho para deitar três homens abaixo só com uma lambada com as costas da mão, que mudasse de estação... Três quartos da viagem...

A dada altura percebo que o meu cansaço começa a transformar-se. Talvez se deva ao facto de a parte da estrada para a qual houve verba já ter terminado há muito mas a vontade de chegar do prazenteiro nem por isso pelo que a cada buraco - e é difícil notar que parte da estrada não os tem - os meus interiores chocalham, elevam-se e caiem abruptamente dentro de mim, a minha cabeça resvala no vidro para trás e para a frente (não tem de quê, Dr. Pestana, pode contar comigo para lavar vidros com a cabeça quando quiser...). Estou feita. O estômago contrai-se, os intestinos revoltam-se e na minha mente ecoa: não acredito que te vais vom**ar e bor**r toda num minibus do Hotel Pestana!!! Pensei que me ficava ali. Pensei que era aquela terra, afinal, que iria ver-me partir deste plano e que a minha ida para lá tinha tido sempre esse intuito embora eu ainda não o soubesse: ia morrer longe da pátria, embrulhada numa toalha de praia, toda bor***da, agarrada ao assento de um veículo pertencente a uma conhecida cadeia de hotéis. Mais fino não podia haver... Não tendo alternativa, agarrei-me também ao Senhor. Repeti tudo quanto era Avé Maria e Pai Nosso que ouvia na rádio com esperança que o terço não acabasse tão cedo de modo a que a ladainha me fizesse concentrar numa dimensão mais espiritual e colocar em segundo plano as emergências físicas e as partidas da natureza. Foi o que me safou.... o organismo acalmou e eu pude respirar de alívio. Afinal, ainda não seria aquele o meu fim. Ámen.

Quando a missa termina, o programa muda para uma espécie de "quando o telefone toca" mas de nível técnico semelhante ao das comunicações feitas via fio e copos de plástico na ponta com que brincávamos quando éramos pequenos... "Allô, ouvinte, com quem estou falando? Allô? Allô?? Allô, ouvinte?? Boa tarde! Como se chama?", "Eliseu", "Boa tarde, Eliseu, de onde está falando?", "De Água Porca", "Muito bem, Eliseu, de Água Porca, o que quer dizer a seus familiares e amigos neste sábado de Páscoa?", "Muta saúde e félicidade e que Deus bençoe todos, em meu nome e de Miquinhas e Afrânio e José e Cucuca e Marcelina e Juvenir e Josué e Cristina e Edilson e....", "Obrigado, Eliseu, uma santa Páscoa para si também!!". Entra música, entra telefonema, entra música outra vez. Mais umas duas ou três tentativas de contacto com ouvintes para que se espalhe a santa Páscoa que não dão em nada e a música retorna. Eu atento na letra: moça danada, mulher artimanha, trepo por ti como se fosse uma aranha.... Ooookkkk... Sexto ou sétimo telefonema da emissão: "Allô, boa tarde, ouvinte, como se chama?", "Eeerrr... ai... eeerrr... Manuela!!", "Certo... Manuela, de onde é?", "Sou de Buraco Fundo da Pindaíba", "Muito bem, Manuela de Buraco Fundo da Pindaíba, a quem quer desejar uma boa Páscoa neste sábado?", "Quêria desejar ao meu filho Carlito que tá intrenado. Sabe, ele espetou uma agulha no braço e agora está intrenado e eu queria dizer a ele que vai ficar tudo bem e que ele está longe mas para ficar milhó porque sabe ele espetou uma agulha num braço e como espetou uma agulha num abraço agora está intrenado e...", "Obrigado, obrigado, Manuela, uma santa Páscoa para si!". Entra música. A da aranha...

O programa termina e a locutora começa os anúncios (sim, sempre a mesma pessoa): falecimento do Dr. Jorge Costa Rica comunicado pelos quinze ou mais filhos, todos doutores, o que não deixa de ser devidamente assinalado assim como o nome completo de cada um deles e, finalmente!, local das cerimónias fúnebres. Mais anúncios de passagens para a outra margem mas sem o mesmo glamour (e extensão!!) do comboio de "doutouragem" e eu a imaginar o meu: turista portuguesa falece em minibus de hotel de cinco estrelas, entre Água Porca e Buraco Fundo da Pindaíba, por se ter andado a alambazar de santolas e côcos locais confiante de que nada se lhe pega. Hotel Pestana pede indemnização à família pelo facto de o veículo ter ficado inutilizado derivado aos fluídos e não só que a defunta por lá deixou....

Seguem-se os anúncios de casas, espectaculares oportunidades, uma com três quartos, uma sala e um corredor...

E eu sorrio, de intestino controlado mais uns quilómetros. Também é isto São Tomé... :)

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