terça-feira, maio 06, 2014

O presente

Vagueia pelo parque como tantos outros - são os que não são perigosos, dizem. Pequeno, grisalho, magro, curvado, a idade que já pesa, os passos demoram-se apesar de pequenos e até quase ligeiros. Alinhado, sempre bem alinhado. Sorridente, sempre sorridente. Com um sorriso terno de quem não sorri para fora, antes lhe vem de dentro. Um sorriso de alma, acho eu, de alma contente e serena de ser quem é. Ou quem julga que é. 

Cumprimenta-me sempre que passa por mim: sempre o mesmo mise en scène: pára, conservando uma distância cavalheiresca, curva ligeiramente e respeitosamente a cabeça e, mantendo o sorriso terno que nada também nos olhos, diz: boa tarde. Não sei se me vê realmente, se me reconhece de umas vezes para as outras, se me distingue das outras pessoas que por aqui circulam e a quem, por certo, também cumprimenta: sei que me ouve porque só se retira quando respondo, sorrindo ternamente também: boa tarde. Porque o sorriso terno que também nada nos olhos viaja para fora dele e contagia por dentro fazendo-me sorrir sem querer. É inevitável.

Hoje, José Luís Peixoto e o seu "Cemitério de pianos" na pausa para almoço. Dentro do carro, banco comprido para trás, de janela entreaberta para aspirar a sombra das árvores e a conversa fiada dos pássaros, leio em silêncio. De repente, uma batida tímida no vidro para não me assustar. Viro a cabeça e lá está ele: distância cavalheiresca, cabeça inclinada, sorriso terno que nunca se desfaz: boa tarde. Devolvo já sorrindo mas, estranhamente, não o vejo retirar-se logo como de costume. Fica parado uns segundos e acrescenta: vous avez une visage très jolie. O seu sorriso alarga-se e ilumina-se, o meu também, agradeço sentindo a maior ternura do mundo e ainda recebo um "good afternoon" antes da partida. O sorriso terno vira-se com ele, a alma contente e serena vira-se com ele e continuam o seu caminho. O que me deu de presente fica comigo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Penso saber de quem falas. Já vi essa alma leve a deambular, também na minha pausa para almoço, no sítio onde trabalho. Se não é ele, é outro que também me transmitiu o que escreveste tão bem.

t disse...

Alma leve! É isso mesmo... :)