E assim chegamos ao dia em que nos separamos... Mais um "fim", como destacou a progenitora. A ela disse que não exagerasse, era só um carro, um carro do qual já te terias desfeito se tivesse cabido a ti fazê-lo. Vinte e não sei quantos anos já é idade mais que suficiente para merecido descanso. Acho que a convenci. Mas a mim abriu-se alçapão de memória...
Lembro-me de o ter ido ver pela primeira vez contigo. Lembro-me de irmos ao stand que já não existe, levados pelo velhinho Citroen Visa vermelho. E lembro-me da arrogância do vendedor, a desvalorizar o Visa com vista a melhor negócio e eventual melhor comissão. Lembro-me de o deixares falar e falar e falar para no fim, quando ele, arrogante mais uma vez, te disse "então vamos lá assinar a papelada", responderes com um sorriso satisfeito e seguro "calma, meu caro amigo, eu só vim ver e saber quais as condições, ainda não me decidi a comprar nada, pelo menos aqui". Piscaste-me o olho e nesse dia eu aprendi como se lida com a arrogância. É deixá-la inchar. Quanto mais inchada, mais gozo dá a estocada final.
Lembro-me que foi nele que aprendi a conduzir. Sim, porque tinhas razão quando me dizias que as aulas de condução só ensinam a pôr a máquina em andamento. O resto aprende-se na vida real, no trânsito, na confusão, no dia-a-dia, sem instrutor ao lado para pressionar o travão.
Lembro-me que foi nele que nos levaste a todas - acho que seriamos umas oito -, mascaradas até ao tutano, à festa de Carnaval que organizámos naquela discoteca de índole duvidosa alugada para esse dia (aluguer que não compreendia serviço de pessoal a não ser o do bar, bem entendido). Lembro-me da CL no banco de trás toda curvada por causa da sua comprida pena-enfeite-de-cabeça, parte integrante de indumentária dos anos 20. E lembro-me que essa curta viagem foi antecedida por uma tarde lá em casa dedicada a pôr toda a gente bem equipada de respectiva fatiota, o meu quarto feito camarim de teatro ou bastidor de desfile de moda - roupa, acessórios, pinturas espalhados por todo o lado -, a progenitora a alimentar-nos a tarte de maçã caseira e sumo e a colaborar como costureira-cabeleireira-maquilhadora e o que mais fosse preciso para garantir que aquelas oito amigas, de sempre e até hoje, saíssem das suas mãos impecáveis: o esfregão (sim, esfregão...) e as toneladas de laca no cabelo anos 40 da C., as frutas bem cosidas (com "s"...) e seguras da Carmen Miranda da A., os teus óculos antigos, quadrados e de lentes verdes, que pareciam ter sido guardados de propósito para que eu os pusesse naquele momento, a completar o visual anos 70 juntamente com os sapatos de madeira compensados de outra progenitora de outra de nós. Estarias calmamente na sala a ler o jornal não te envolvendo em nada disto, esperando apenas pelo momento em que fosses chamado a intervir como chauffeur das miúdas. O chinfrim que fizemos nessa curta viagem...
Lembro-me de as minhas amigas se referirem a ele como Brigitte Bardot ou simplesmente Brigitte... (e já viste que também tem no nome o ano anterior e o ano posterior ao do meu nascimento? De certeza que sim, muito primeiro que eu, eu diria que logo no momento em que o recebeste...)
Lembro-me da manta que exigias que o banco de trás apresentasse para permitir que o cão lá se pusesse à janela. E não me lembro mas acredito que esta cedência tenha levado meses e meses, se não anos, a ser conseguida, "era o que faltava, que disparate, é um animal, tem que ir no chão, agora à janela..!".
Lembro-me de, no banco ao meu lado e enquanto eu conduzia, me pores a ponderar a
relação espaço disponível/distância/velocidade...
Lembro-me de mo passares para a mão assim que cheguei a casa anunciando que tinha passado no exame de condução para irmos nele almoçar e comemorar no já extinto Caleidoscópio ali no Campo Grande. E lembro-me de te ver e crer confiante nas minhas capacidades enquanto a progenitora, no banco de trás, soltava "ais" a cada curva.
Lembrei-me de tudo isto enquanto almoçava há bocado: "guizadinho de grão com enchidos". Pareceu-me boa ideia quando temperada com a fome mas fiquei-me enjoadamente a meio, o estômago e o fígado a pedir clemência. Até me admira estar a conseguir escrever. Tal qual cobra que engoliu boi, pasmo como consigo que o sangue aflua ao cérebro...
Até sempre, Brigitte. Foi bom, muito bom. E assim te guardo. Correcção: guardamos.
Sem comentários:
Enviar um comentário