quinta-feira, outubro 27, 2011

O que sobra

A história é comovente. Um casal, de 94 e 90 anos, casado há 72, sofre um acidente de automóvel e encontra a morte no hospital. De mãos dadas. Amor. Amor até ao fim, dizem os familiares à imprensa.

A minha mente viaja, tentando imaginar um pouco da longa vida desse amor caracterizado nos jornais como algo raro, até único, um sentimento profundo, sem brechas, incontornável, que um dia juntou aquelas duas almas não as deixando separar jamais, exemplo de uma qualquer época que já lá vai, prova viva até à morte do que hoje não se consegue mais encontrar. A minha mente viaja pelo que de idílico escorre desta história endeusada, pela nostalgia que nos provoca a assunção da nossa imperfeição de comuns mortais, da nossa incapacidade de sequer almejar qualquer coisa de semelhante. Enleada nesta análise romântica e fantasiosa, provando o que de agridoce ela me oferece, resvalo para fora de berma e deixo-me levar para o submundo dos que não são capazes, dos que nunca viverão um amor assim.

Até que um abrir e fechar de olhos mais demorado me faz enveredar outra vez pela realidade do que vivo e vejo viver e assentar os pés na terra. Primeiro ao de leve, a medo, mas o suficiente para me arriscar a esmiuçar um pouco o que acabei de ler e, acima de tudo, o que construí em cima disso tal qual castelo de algodão, doce como não poderia deixar de ser, agora a revelar-se talvez demasiado adoçicado.

Acredito em Gordon e Norma, ele e ela, que se conheceram e se apaixonaram, que decidiram casar, ter filhos, partilhar espaços, os de vida e os outros, e que assim se mantiveram até à morte que não os separou. Mas acredito também nas entrelinhas que escapam ao resumo, acredito na vida real, a do dia-a-dia, a que dá trabalho e dores de cabeça, aquela que, no fundo, é a que nos reveste em simultâneo de normalidade e excelência se conseguirmos que não amarfanhe o que é mais importante.

Até podiam não ter olhos para mais ninguém mas uma vida inteira pode ser muito tempo e a solteirice tem os seus encantos... será que não houve, em nenhum momento, por parte de nenhum deles, dúvidas em avançar com o casamento? Será que não sentiram aquele calafrio que percorre a espinha quando estamos prestes a dar um passo para o desconhecido e tememos que ele seja grande demais para as nossas pernas? Talvez. Talvez até os primeiros tempos não tinham sido fáceis e o dinheiro tenha escasseado e as preocupações com as contas a bater à porta tenham vindo ao de cima causando nervosismo e discussões e até falta de apetite, o que Norma interpretou como uma ofensa aos seus dotes culinários... Terá havido dias em que Gordon preferiu ir para o bar com os amigos e chegou tarde e a más horas o que lhe valeu umas noites passadas no sofá. Até pode ter acontecido que Norma se tenha encantado em demasia com o seu papel de mãe, deixando para o marido a árdua tarefa de aquecer o seu jantar já arrefecido... Talvez Gordon tenha umas quantas vezes batido com a porta e gritado, sem se preocupar com a vizinhança, que não aguentava mais e é quase certo que Norma desconfiou de um ou outro interesse do marido nas amigas secretárias lá do trabalho e que, em choro, ameaçou sair de armas e bagagens e prole atrás e, se calhar, até foi mesmo, para casa dos pais, durante uma semana ou duas. Talvez tenha havido discussões em relação à educação dos filhos ou às descobertas que iam fazendo um do outro, terá havido sonhos deixados para trás e arrependimentos por não se terem concretizado. E quem sabe um ou outro dia recheado de dormência e "tanto me faz" de quem parece que nem se importa se o seu par está bem ou mal, quer é que o deixem sossegado. Certamente, houve zangas e costas voltadas, birras e perdões, dias em que cada um deles preferia estar em qualquer outro lugar. Terá havido falta de espaço, necessidade de não se esquecer de si esquecendo o outro, dúvidas e equações, laços cortados enquanto outros se reforçaram. E talvez distanciamento, dedos apontados, culpas antigas atiradas à cara, se calhar até tempos de interregno, se não físico pelo menos emocional, e de olhos brilhantes para outras realidades, para outros mundos. Talvez tenha havido alturas de desencontro e de reencontro, enquanto as obrigações ditavam o ritmo e a máquina da vida prensava o encanto dos tempos de namorados.

Haverá, afinal, assim tanta diferença entre nós, os comuns mortais, e este casal agora célebre?

Acredito em Gordon e Norma como acredito no Eduardo e na Ana, na D. Celeste e no Sr. Faria, na Marta e no Gustavo, no Zé "Cabeçadas" e na Vanessa Sofia... acredito neles como gente, gente comum, que, depois de tudo bem espremido, constata a verdade do que lhe sobra. E, a partir daí, simplesmente avança em consonância...

Gordon e Norma avançaram. Juntos.

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