terça-feira, abril 12, 2011

Os buracos e as almas

Gosto de acreditar que tudo tem uma razão de ser. É mais fácil, digere-se melhor a vida quando a imaginamos com um propósito maior. Gosto de pensar que não há coincidências; gosto de encarar as fases mais negras acreditando que é suposto que o nosso mundo se vire de cabeça para baixo; gosto de pensar que até elas, as fases de maior escuridão, servem para nos ensinar alguma coisa... se acredito ou não, é perfeitamente irrelevante. Gosto e pronto.

A verdade é que, na altura, nem me dei conta. Passou-me ao lado. Não me tocou de forma particularmente positiva mas, para ser franca, nem lhe prestei atenção. Foi apenas mais uma pedra, bem pequena por sinal, que se resolveu acomodar no meu sapato, nessa altura a abarrotar de pedregulhos acabadinhos de chegar e que ainda levariam muito, muito tempo até serem devidamente acomodados, se é que alguma vez ficarão. Uma pedrinha de nada, que se encostou ali a um cantinho e ali esteve quieta durante algum tempo. Ou pelo menos, assim o achei.

Não deixa de ser curioso como a sua chegada coincidiu com todas as outras... a impressão que me dá hoje é que, naquela fase, o céu permitiu que se abrisse em si um buraco negro, daqueles limitados no tempo, fenómeno passageiro e raro, que acontece uma vez em não sei quantos milhões de anos, buraco negro num pedaço de céu que dura apenas alguns segundos e que se fecha à mesma velocidade com que aparece. A questão é que, enquanto aberto, naquele preciso momento, naquele preciso local, pode ter a sorte de sugar algo para o seu interior. E eu, talvez estivesse no sítio errado, na altura errada, sem escudo protector que me permitisse não ser apanhada...

Lembro-me bem, não foi há tanto tempo assim. Durou um ano, talvez, não sei, um ano distribuído por dois, quase metades certas. Enredada em mim, lidando com dilemas interiores, praticamente ignorando que o mundo corria lá fora. Não o sentia. Os nós de marinheiro que me compunham iam-se apertando, da ponta dos pés às pontas do cabelo, tornavam-se cada vez mais cegos, mais rígidos, arrepanhando a coluna, arredondando-a, fazendo-me diminuir de tamanho e dobrar sobre mim própria. Tartaruga, caracol, debaixo da carapaça. Os meus dias corriam. Pesados, pareciam ter o triplo da duração, passavam de forma indolente e desinteressante, seca. Os dias reais passavam-me ao lado. Tinham luz, como todos os dias têm, mas eu não a via. Tinham gente, acontecimentos, mudanças de estação mas eu olhava para o outro lado, não deixava que nada disso me afectasse. Porque queria? Não, porque não vivia nele, no mundo exterior. Vivia no meu próprio mundo, ligando-me à vida que corria lá fora apenas e só quando não tinha forma de não o fazer, quando era obrigada.

E é aqui que o problema entra. Na vida exterior, secundária para mim durante tanto tempo. De vez em quando, o meu cérebro ligava-se à terra e assim ia "apanhando" no ar pequenas partículas que, por si só, não acarretavam relevância mas que, passado um tempo, olhando para o seu somatório, me fizerem compôr uma imagem mais completa do que estava à minha frente. Talvez tarde demais ou talvez apenas quando teve que ser.

Mas continuei a subestimá-la, essa é a verdade, dando-lhe a pouca importância que achei que tinha, para mim, para a minha vida, tendo em conta tudo o resto com que tinha que lidar. Continuei a subestimá-la convencida de que era uma daquelas coisas que mói mas não mata e que eu, dona da personalidade e carácter que me foram destinados aquando do meu nascimento e ao longo da minha criação, iria conseguir dar conta do recado. De mais esse recado. Sem medos, sem hesitações, com força e determinação, necessitando para isso apenas de usar a confiança de ser quem sou.

Hoje pergunto-me se deveria ter estado mais atenta. Hoje pergunto-me se poderia ter feito algo diferente. Concluo que não. Mesmo que tivesse enfrentado o "monstro" logo no início, admitindo o seu devido tamanho, acredito que estaria hoje exactamente onde estou. Não... minto. Estaria mais à frente, o choque frontal já se teria dado há mais tempo. E essa é a única diferença.

Porque as almas, essas, são o que são. Hoje, ontem, sempre. A minha e a outra.

A minha foi, em tempos, sugada para o buraco. A outra é composta por ele.

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