terça-feira, maio 11, 2010

"Fábulas"

Café mais restaurante mais porto de abrigo em dia de chuva, para um grupinho de leitores a querer ser escritores, bem no coração do Chiado. Pelo menos neste Sábado assim foi. E lá nos juntámos, umas quantas almas diferentes e desconhecidas, à roda da mesa de madeira escura, rodeadas de quadros e côr, a dar largas à imaginação e a aprender o que é isto de pôr no papel as palavras com vida e graça. Uma prenda comprada a pensar em mim, um dia que me deixou mais saciada de coisas boas.

Éramos sete, como alguém bem referiu, confesso que não nos tinha contado. Sete mulheres distintas com um gosto em comum. MG, mulher de 62 anos, professora reformada do 1º ciclo, que costumava incentivar os seus alunos para a escrita ajudando-os a encher as páginas de papel manteiga dos livrinhos que comprava de propósito para o efeito. Viúva há pouco tempo mas com muita vida ainda para viver, vida daquele tipo que se vê nos olhos e não no bilhete de identidade. A C., de 35 anos, trabalha num hospital dos mais dolorosos da capital, na área de cuidados paleativos. Diz que, entre colegas, usam o humor para conseguir descontrair da tristeza que vêem todos os dias e ela usa também a escrita. Já publicou alguns livros de poesia, já concorreu a diversos concursos literários e colabora com uma publicação on line. A M., de 34 anos, considera a escrita uma "necessidade física", um escape, algo que lhe faz bem. Apesar de já não ser novata nestas coisas dos workshops, há já algum tempo que a sua vida roda à volta de duas pequenas crianças e por isso sentiu que estava na altura de voltar a criar espaço para si mesma. Por último, a G., bancária e escritora em part time a quem já só falta "um bocadinho assim" para que o segundo livro apareça nas bancas. As outras três eram eu, a C. "irmãmiga" e a R. que tinha consigo a tarefa de nos orientar.

O dia passou rápido, de tão entretidas que estávamos a beber umas das outras e de nós mesmas, do espaço, do papel, e os exercícios pareceram poucos e deixaram água na boca. O meu preferido consistiu em começar a escrever, sobre qualquer coisa que nos viesse à cabeça sendo que, de minuto a minuto, nos era dada uma palavra ou expressão que deveríamos incluir no nosso texto. E tinhamos que o fazer antes de receber a palavra seguinte, portanto, no espaço de um minuto. As palavras/expressões foram: rendilhado, inestética, grunhidamente, amplamente ambígua, lógica ilógica, invólucro e desumidificador. O que me saiu foi isto:

"As coisas mudaram. Ainda não sei para que forma mas mudaram. Crescemos juntas, embora tu aches que só eu é que cresci, mas crescemos em paralelo, muitas vezes não nos tocando sequer. E esse era o meu mal para ti. Porque me querias mais perto, mais tua. Mas as nossas almas são diferentes, são diferentes os seus rendilhados e muitas vezes, talvez vezes demais, não formam juntos um padrão. Dói-te isso, eu sei, ainda mais porque julgaste sempre que quem estava mal era eu, que a minha forma era inestética, errada, e que a tua era aquela que devia ser.

Mas as coisas mudaram. E se antes tínhamos alguém a fazer de fiel da balança, agora temos que ser nós a equilibramo-nos, sem saber bem como. Os sons dessa tentativa parecem grunhidos de um animal a ser forçado a algo mas é assim, grunhidamente, que vamos avançando.

Não sei bem como te encarar, como gerir a nossa relação agora, nesta esfera tão amplamente ambígua, onde a lógica ilógica impera. Mas é agora este o nosso invólucro, o invólucro desta relação com o qual temos que lidar. Olhando-o ambas com estranheza, tentamos adaptá-lo a nós e fazê-lo funcionar. Tentamos mas nem sempre conseguimos. Neste dia chuvoso, o invólucro rendeu-se à humidade. Murchou, tornou-se mole. Talvez mais umas palavras minhas possam funcionar como desumidificador e possamos tentar mais uma vez."

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