Calor. O edredon que já não se adapta à época mas a humidade é saborosa e envolve o corpo, como sauna caseira. Vai e vem de quem dorme e acorda, quase sem acordar, e volta a cair no sono. "És tu? És tu, não és? Eu sabia, eu sabia que sim" e de mãos dadas seguimos até que te desprendes e sorris "espera, onde vais? vais-te embora?" e o teu sorriso diz-me que sim e que vais sem mim porque assim tem que ser. Angústia, angústia e os olhos a abrir levemente para receber a fina luz lá de fora que trespassa os cortinados. Voltando a fechar ainda te procuro mas já não te encontro. Encolho-me, fico ali sem saber o que fazer, a sensação de perda cada vez mais avassaladora "não quero voltar, não quero, fico aqui à tua espera". O calendário e as suas folhas mostrando os quadrados dos números, a folhear-se à minha frente, as datas que não quero ver porque eu não sou pessoa de datas e quero ser cada vez menos. Não quero datas formais de coisas nenhuma, não quero. Os acontecimentos têm o seu lugar no dia em que aconteceram e na nossa alma. Se depois faz uma semana, um mês ou um ano, não interessa. Não interessa que o tempo tenha passado, não interessa, só interessa o que está para a frente e o que levamos connosco, cá dentro, e o que está cá dentro não obedece às regras do tempo comum. Pode para sempre existir como se fosse presente, pode esfumar-se sem deixar rasto como se nunca tivesse acontecido. Levanto-me, tento desviar-me mas o calendário, daqueles em bloquinho, com números a vermelho, consegue sempre pôr-se à minha frente. Fico zangada, sinto a raiva a apoderar-se e dou-lhe um pontapé com toda a minha força. "Sai! Já disse que não te quero!". Consigo o meu propósito para depois ser transportada para aquela casa, da minha infância e não só, tão minha como eu. Sinto o cheiro, vejo as cores, é Verão. De repente, estão todos lá, curiosos com a forma como me apresento. Todos a querer chegar-se, para saber e integrar na sua vida, ansiosos até. "Mas... espera... eu não sei se quero, eu ainda não sei o que significa... esperem lá, não me pressionem!". Grito para que recuem, para que me deixem em paz. Estão a sufocar-me com as suas mãos, com os seu olhos, com o seu interesse em demasia e eu não me sinto confortável. "Basta! Não vou deixar! Há-de ser à minha maneira." Mas depois ouço a famosa frase "tens que tratar bem a vida para que ela te trate bem a ti e não tens tratado...". Medo, muito medo dos erros e das suas consequências que na boca dela são sempre definitivas e desastrosas. "Há alturas em que enveredamos por um caminho e isso define toda a nossa vida, não havendo volta atrás" ouço também. "Cala-te! Chega, não quero ouvir mais isso!" e fujo, de mãos nos ouvidos, porque as palavras já entraram e já feriram e eu não quero que entrem mais porque há olhares que já não me saiem da cabeça e outras palavras e gestos e expressões e por isso chega, já tenho comigo o bastante. Fujo e dou por mim num espaço aberto, cabeça encostada à gata felpuda tricolor e o seu padrão a pintar o céu. Sozinha, sinto saudades, enormes, imensas saudades de gente, de momentos, de conversas, de músicas que embalavam os meus dias, de planos, de sorrisos. Saudade que cai como um manto e que eu absorvo. E ali fico, no fofo, a sentir a dor que a saudade me dá, a saboreá-la em cada célula, testa enrugada, punhos cerrados, a tristeza a emoldurar os olhos. Mas a campainha começa a cutucar-me no ombro com o seu dedo indicativo. Cutuca, cutuca, cutuca... É o dia que chegou e quer começar a correr. É o dia que diz "por agora chega, logo à noite, quem sabe, há mais".
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