Já era noite e chovia a potes. O limpa pára-brisas a funcionar só de um lado e o vidro, para além de sofrer do normal embaciamento invernoso, ainda se conseguia revestir de uma película gordurosa qualquer que não sei se onde veio. Conclusão: não via um boi! Mas precisava ir, precisava andar, e lá fui eu, cidade afora, a conduzir como podia. Cada vez que parava num sinal limpava, limpava, limpava, ora com toalhetes, ora com lenços de papel, ora com um paninho, ora com a manga do casaco que o desespero já era grande! E só pensava: meu caro, a nossa relação está mesmo a chegar ao fim da linha...
Nisto, páro no último sinal antes de chegar ao meu destino e ouço uma buzinadela ao lado. Olho e o condutor faz sinal para que abra a janela. Desconfiada, lá me disponho a ouvir o que ele me tem a dizer:
- (com sotaque do Norte) Batata! Cum batata!
- Desculpe??
- Batata! Esfregue cum batata que resolbe!
- Errr... com batata? No vidro??
- Sim, esfregue batata (enquanto gesticulava em círculos) que isso sai tudo! Ou então com um cigarro, tombém dá...
O sinal abriu sem me dar tempo de abusar da simpatia do colega condutor do Norte e perguntar mais umas coisitas sobre os conselhos que me dava: mas... batata cozida? Crua? Frita? Se for frita vou já ali ao MacDonalds e esfrego um pacote no vidro! E essa coisa do cigarro... utiliza-se o fumo, é isso? Ou o cigarro propriamente dito? Deduzo que aceso... mas limpa-se a gordura com a brasa??? Porque isto é importante! É que aplicar a sabedoria popular à optimização da performance de peças automóveis não é para qualquer um, é coisa de profissional e eu precisava saber concretamente o que fazer! Mas pronto, não deu tempo e lá nos despedimos com um "obrigadinho, boa noite para si também!" Continuei e só me vinha à cabeça há quanto tempo aquela alma devia vir atrás de mim a ver-me conduzir toda torta e a atirar-me ao vidro feita louca a cada paragem forçada (ou nem por isso) para sentir necessidade de me aconselhar...
Mas enfim. A noite seguiu, com aromas orientais temperados de... sovac... cof, cof, cof... não, quer dizer... café!... (combinamos que aquele odor seria do café, alguma moagem especial, pronto...) enquanto a conversa boa fluia como sempre. Sissas são sempre sissas...
De novo no carro, as duas marrecas a tentar ver a estrada à nossa frente através dos únicos pedaços de vidro minimamente limpos, mesmo juntinho ao tablier... Mas já éramos duas, a tarefa estava facilitada...
Volto a casa através do nevoeiro (e o que eu gosto de nevoeiro!), tal qual D. Sebastião dos tempos modernos (faltava-me o colarinho em harmónio, é certo...), a piorar a visibilidade mas que se lixe, é bonito que se farta, adoro andar lá pelo meio!... e assim me brinda a meia-noite.
Paralelamente, o Universo a dar tréguas. Pode não parecer, amiga, mas é, acho que é essa a intenção d'Ele.
Paralelamente, a noção estranha que forças ocultas podem mesmo existir. Talvez por serem ocultas nunca lhes dei grande crédito mas sei lá, já não sei nada...
Paralelamente, a vida a correr. Muitas vezes embaciada também.
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