sábado, novembro 27, 2010

Carta V

Tenho hesitado muito em escrever-te. Tenho hesitado porque estou numa fase em que me falha a capacidade de verbalização... estranho, não é? Logo eu, que tenho sempre algo a dizer e digo... Mas desta vez é diferente. Tenho o que contar, o que explorar, o que dissecar mas... não sei como. E como se escreve sobre algo quando não se sabe como o verbalizar?

As coisas mudaram desde a última carta, como é suposto, como seria de esperar. O tempo foi passando, como é seu hábito, através de mim, comigo ou levando-me, foi passando e eu passei com ele como pude. E fomos mudando os dois, muitas vezes não a par e passo, mas lá fomos seguindo o nosso trajecto. E se o tempo por si só não muda nada, é um precioso auxiliar quando queremos ou temos que mudar e tomamos essa decisão. Tempera, favorece, acolhe a mudança e mima-a, fazendo-a crescer.

Mas, o tempo e eu, levámos-me a um determinado patamar que não consigo definir. Houve escuridão absoluta, fundo de buraco, floresta tenebrosa e densa, e eu lá estava "etiquetada" dessa forma. Mas agora não sei bem onde estou...

Por isso, hesitei em escrever-te. Porque queria dizer qualquer coisa como "agora estou assim e assado e fiz isto e aquilo e penso e sinto desta e daquela maneira" e não um "não sei...". Porque ninguém escreve a ninguém para dizer "não sei".

Mas confio. Confio que não precises das minhas cartas ou da minha verbalização para me entender. Confio até que estejas mais à frente do que eu e já saibas bem o que tudo isto significa. Por isso, e partindo desse pressuposto, aqui vamos então...

Estou a andar e não andando. Talvez seja essa a grande diferença. Estou a andar de cabeça mais direita, de passada mais convicta, estou a andar para a frente. Ainda não sei onde vou mas sei hoje, com toda a certeza, que não quero mais ficar às voltas no meio do buraco e que é fundamental que de lá saia. Às vezes pergunto-me o que achas de tudo isto... será que sentes desilusão? Será que me consideravas mais forte? Será que esperavas o retomar de um caminho mais cedo? Será.. que te desiludi..?

Vou fazendo o que posso, como posso. Há dias difíceis mas já aprendi a aceitá-los e a esperar com mais fé por dias melhores. Mas já há dias em que me revejo como eu sou, partes de mim só minhas que não se deixaram levar pela enxurrada. Acho que hoje voltei a ser mais quem tu conheceste. Mas diferente, apesar de tudo, mas até melhor, gosto eu de pensar. E só uma coisa me entristece nesta melhoria... é o facto de não ta poder mostrar.

A nossa pessoa em comum tem também os seus dias. E os "seus" dias não são fáceis de ir levando... porque, como sabes tão bem, os "seus" dias transbordam de si e escorrem num largo perímetro, molhando quem esteja mais próximo. E eu sou que lá está. Estou a ver o teu sorriso agora, dizendo-me "eu sei, conheço a "peça" há 40 anos, sei muito bem como é!" Estou a ver o teu sorriso e a sorrir contigo.

Nem imaginas a quantidade de vezes que sorrio contigo, nem imaginas. Tudo, qualquer coisinha de nada, me faz pensar no que dirias, farias, pensarias... e quase sempre sei bem o que seria. E sorrio por te conhecer tão bem, sorrio por sentir assim a tua presença como se nada tivesse mudado. Nem imaginas a quantidade de vezes que me esqueço que tudo mudou...

Estou a andar, é o que posso dizer, estou a andar. Peço desculpa pela indefinição mas é o que tenho para dar de momento. Estou a andar e, por incrível que pareça, sinto sempre que, enfiada num buraco, a dar passadas largas ou a recuar, a estancar no espaço e no tempo, seja o que for, tu o fazes comigo. É o meu grande segredo, acho eu. É o meu grande truque, é o meu grande privilégio.

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