quinta-feira, janeiro 27, 2011

"É o facies, é o facies..."

No início nem me apercebi. Concentrada nas desculpas que pretendia dar pelo atraso, na minha óptica, imperdoável, passei por aqueles dois seres sem os ver realmente. Abri a porta, desfiz-me em explicações e corri para o elevador. Lá dentro, ficámos em filinha, porque não há espaço para mais, e eu era a primeira, controlando os andares que passavam enquanto me tentava lembrar a que divisão me devia dirigir primeiro para garantir um mínimo de apresentação. Entrámos, abri as luzes e fui recebida por um cheiro a detergente. A boa da Dona P. tinha ido nesse dia o que me aliviou de imediato. Acho absolutamente insuportável receber pessoas estranhas com a casa desarrumada, com pêlos de gatos e restos de areia que eles fazem o favor de arrastar da liteira pelo chão da casa toda, com roupa estendida, enfim, gosto de tudo impecável, acredito no poder das primeiras impressões. Mesmo assim, e depois de os ter encaminhado para a sala e deixado que o profissional do ramo conduzisse a visita, ainda fiz uma ronda para me certificar que tudo se alinhava conforme os meus desejos. Depois disso, relaxei e aproximei-me pronta para prestar os esclarecimentos adicionais que fossem necessários.

Nessa altura vi, com olhos de ver. Nessa altura, tive finalmente tempo e cabeça para observar quem se encontrava à minha frente. Uma mulher, de cinquenta e alguns, de mãos nos bolsos do grosso casaco comprido. Sem mala. Percebi pela conversa que morava na zona, deduzi por isso que, sendo "vizinha", saiu só com as chaves de casa com a promessa de um "vou ali e já volto". Incomodou-me. Parece estúpido mas incomodou-me ver o meu imóvel ser tratado como a mercearia da esquina, à qual a visita não merece mais do que umas mãos nos bolsos. Vá lá, não veio de chinelos...

Expedita, fez perguntas praticamente ignorando o intermediário enquanto me informava que queria uma casa para depois alugar dando-me também a entender que a exigência era relativa visto que não era ela que ia lá morar. Irritou-me. E aqui já não acho estúpido que me tenha irritado. Irritou-me ser tratada como dona de imóvel de 2ª, dona de imóvel "para quem é, bacalhau basta". E percebi claramente que estava perante alguém, de mãos nos bolsos e não de chinelos por mero acaso... se calhar tinha acabado de vir da rua e não lhe apeteceu mudar, se calhar os chinelos não agasalhavam o pézinho o suficiente tendo em conta o frio que estava... em todo o caso, alguém que não percebe que há comentários que até podem ser a mais pura das verdades mas que não se fazem.

A conversa prossegue, e enquanto me confirma que sim, gostou muito e até pode estar interessada, permite-me que a observe mais um pouco. Loura, não excessivamente, mas de um louro que não me agrada não sei bem porquê, a condizer com as pulseiras douradas, umas quantas a chocalhar. E as mãos continuavam nos bolsos. Arranjada, um pouco demais para o meu gosto, mas havia ali qualquer coisa que não jogava... o que é que não joga aqui... o que é que não joga aqui...? E, de repente, fez-se luz! Comecei por reparar no que dizia e como, a ouvir a sério, a perceber pequenas nuances revelando ali muita leitura de cabeleireiro mas pouco mais e, voilá!, olhei-a de frente e percebi: era o facies, como dizia o meu pai, era o facies. A cara, a expressão facial denuncia até um mudo, essa é que é essa. E assim lhe tirei a pinta.

No entanto, não me querendo apressar em julgamentos, esperei mais um pouco, deixei que a cena prosseguisse e eis senão quando, a senhora de mãos nos bolsos e não chinelos mas só por acaso, avança sem medos e "espeta-me" com uma proposta "porque eu vou directa ao assunto, que é mesmo assim". O mediador estava a um canto, tentando interferir quando podia, tentando, lá está, mediar!, mas sem grande sucesso. E eu sorri calmamente, sorri porque sou educada e sorri porque a proposta era idiota e aquela fulana devia achar que estava a lidar com uma miúda, desesperada por vender, não habituada a lidar com "velhas raposas" como ela devia achar que era. Pois sim... De velha tinha alguma coisa, é certo, de raposa nem por isso...

E eu... bom, eu disse simplesmente que iria pensar e que depois comunicaria a minha decisão ao profissional do ramo. Ponto final, parágrafo.

O dito foi-me dizendo, quase só por gestos, que já me ligava e quando efectivamente ligou ajudou-me a compôr o quadro final. Muito dinheiro para aplicar, estava até a pensar em comprar não um mas dois imóveis para alugar, que ia ver mais, que até havia outro mais novo e mais barato e por isso tinha feito aquela proposta. Sim senhor, pois concerteza mas a minha posição é esta. "Sabe... não tenho pressa, outras propostas aparecerão certamente por isso, não se preocupe que eu também não."

E assim ficou o caso arrumado.

Sem comentários: