terça-feira, março 22, 2011

Geração à Rasca — Mia Couto

Um dia, isto tinha de acon­te­cer.
Existe uma gera­ção à rasca?
Existe mais do que uma! Cer­ta­mente!
Está à rasca a gera­ção dos pais que edu­ca­ram os seus meni­nos numa abas­tança capri­chosa, protegendo-os de difi­cul­da­des e escondendo-lhes as agru­ras da vida.
Está à rasca a gera­ção dos filhos que nunca foram ensi­na­dos a lidar com frus­tra­ções.
A iro­nia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e tam­bém estão) à rasca são os que mais tive­ram tudo.
Nunca nenhuma gera­ção foi, como esta, tão pri­vi­le­gi­ada na sua infân­cia e na sua ado­les­cên­cia. E nunca a soci­e­dade exi­giu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exi­gido nos últi­mos anos.

Des­lum­bra­das com a melho­ria sig­ni­fi­ca­tiva das con­di­ções de vida, a minha gera­ção e as seguin­tes (actu­al­mente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das difi­cul­da­des em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e qui­se­ram dar aos seus filhos o melhor.
Ansi­o­sos por subli­mar as suas pró­prias frustrações, os pais inves­ti­ram nos seus des­cen­den­tes: proporcionaram-lhes os estu­dos que fazem deles a gera­ção mais qua­li­fi­cada de sem­pre (já lá vamos…) mas tam­bém lhes deram uma vida desa­fo­gada, mimos e mor­do­mias, entra­das nos locais de diver­são, car­tas de con­du­ção e 1º automóvel, depó­si­tos de com­bus­tí­vel cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes fal­tasse. Mesmo quando as expec­ta­ti­vas de pri­meiro emprego saí­ram gora­das, a famí­lia con­ti­nuou pre­sente, a garan­tir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acre­di­ta­ram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia che­gando para com­prar (quase) tudo, quan­tas vezes em subs­ti­tui­ção de prin­cí­pios e de uma edu­ca­ção para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o tra­ba­lho, garante do orde­nado com que se com­pra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.

Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desem­prego… A vaqui­nha ema­gre­ceu, fene­ceu, secou.

Foi então que os pais fica­ram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um con­certo mas os seus reben­tos enchem Pavi­lhões Atlân­ti­cos e fes­ti­vais de música e bares e dis­co­te­cas onde não se entra à borla nem se con­some fiado.
Os pais à rasca dei­xa­ram de ir ao restaurante para pode­rem con­ti­nuar a pagar res­tau­rante aos filhos, num país onde uma festa de ani­ver­sá­rio de ado­les­cente que se preza é no res­tau­rante e vedada a pais.
São pais que con­tam os cên­ti­mos para pagar à rasca as con­tas da água e da luz e do resto e que abdi­cam dos seus peque­nos pra­ze­res para que os filhos não pres­cin­dam da inter­net de banda larga a alta velocidade, nem dos qual­quer­coi­sapho­nes ou pads, sem­pre de última geração.

São estes pais mesmo à rasca que já não aguen­tam, que come­çam a ter de dizer “não”. É um “não” que nunca ensi­na­ram os filhos a ouvir e que por isso eles não supor­tam nem com­pre­en­dem, por­que eles têm direi­tos, por­que eles têm neces­si­da­des, por­que eles têm expec­ta­ti­vas, por­que lhes dis­se­ram que eles são muito bons e eles que­rem, e que­rem, que­rem o que já nin­guém lhes pode dar!

A soci­e­dade colhe assim hoje os fru­tos do que semeou durante pelo menos duas décadas.

Eis agora uma gera­ção de pais impo­ten­tes e frus­tra­dos.
Eis agora uma gera­ção jovem alta­mente qua­li­fi­cada que andou muito por esco­las e uni­ver­si­da­des mas que estu­dou pouco e que apren­deu e sabe na pro­por­ção do que estu­dou. Uma gera­ção que colec­ci­ona diplo­mas com que o país lhes ali­menta o ego insu­flado mas que são uma ilu­são, pois cor­res­pon­dem a pouco conhe­ci­mento teó­rico e a duvi­dosa capa­ci­dade ope­ra­ci­o­nal.
Eis uma gera­ção que vai a toda a parte mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma gera­ção que tem acesso a infor­ma­ção sem que isso sig­ni­fi­que que é infor­mada; uma gera­ção dotada de trô­pe­gas com­pe­tên­cias de lei­tura e inter­pre­ta­ção da rea­li­dade em que se insere.
Eis uma gera­ção habi­tu­ada a comu­ni­car por abre­vi­a­tu­ras e frus­trada por não poder abre­viar do mesmo modo o cami­nho para o sucesso. Uma gera­ção que deseja sal­tar as eta­pas da ascen­são social à mesma velo­ci­dade que quei­mou eta­pas de cres­ci­mento. Uma gera­ção que dis­tin­gue mal a dife­rença entre emprego e tra­ba­lho, ambi­ci­o­nando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abun­dam.
Eis uma gera­ção que, de repente, se aper­ce­beu que não manda no mundo como man­dou nos pais e que agora quer ditar regras à soci­e­dade como as foi ditando à escola, alar­ve­mente e sem manei­ras.
Eis uma gera­ção tão habi­tu­ada ao muito e ao supér­fluo que o pouco não lhe chega e o aces­só­rio se lhe tor­nou indis­pen­sá­vel.
Eis uma gera­ção con­su­mista, insa­ciá­vel e com­ple­ta­mente deso­ri­en­tada.
Eis uma gera­ção pre­pa­ra­di­nha para ser arras­tada, para ser­vir de mon­tada a quem é exí­mio na arte de caval­gar dema­go­gi­ca­mente sobre o deses­pero alheio.

Há talento e cul­tura e capa­ci­dade e com­pe­tên­cia e soli­da­ri­e­dade e inte­li­gên­cia nesta gera­ção?
Claro que há. Conheço uns bons e valen­tes punha­dos de exem­plos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características não encai­xam no retrato colec­tivo, pouco se iden­ti­fi­cam com os seus con­tem­po­râ­neos e nem são esses que se quei­xam assim (embora este­jam à rasca, como todos nós).
Chego a ter a impres­são de que, se alguns jovens mais infla­ma­dos pudes­sem, ati­ra­riam ao tapete os seus con­tem­po­râ­neos que tra­ba­lham bem, os que são empre­en­de­do­res, os que con­se­guem bons resul­ta­dos aca­dé­mi­cos, por­que, que inveja!, que cha­tice!, são beti­nhos, cro­mos que só estor­vam os outros (como se viu no último Prós e Con­tras) e, oh, injus­tiça!, já estão a ser capa­zes de abar­ba­tar bons orde­na­dos e a subir na vida.

E nós, os mais velhos, esta­re­mos em vias de ser caça­dos à entrada dos nos­sos locais de tra­ba­lho, para dei­xar­mos livres os inve­ja­dos luga­res a que alguns acham ter direito e que pelos vis­tos — e a acre­di­tar no que ulti­ma­mente ouvi­mos de algu­mas almas - ocu­pa­mos injusta, ime­re­cida e indevidamente?!!!

Novos e velhos, todos esta­mos à rasca.
Ape­sar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena des­tes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve ape­nas para demons­trar a minha firme con­vic­ção de que a culpa não é deles.
A culpa de tudo isto é nossa que não sou­be­mos for­mar nem edu­car, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre sol­teira por­que é de todos, e a soci­e­dade não con­se­gue, não quer, não pode assumi-la.
Curi­o­sa­mente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam. Haverá mais triste prova do nosso falhanço?
Pode ser que tudo isto não passe de alar­mismo, de um exa­gero meu, de uma gene­ra­li­za­ção injusta.
Pode ser que nada/ninguém seja assim.

Mia Couto

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