De facto, nunca se conhece verdadeiramente ninguém. Começando por nós próprios. Vamos construindo uma visão de nós ao longo da vida, dando corpo a uma estrutura na nossa cabeça tendo por base ensinamentos, sentimentos, reacções ao que nos rodeia, forma de lidar com o outros, perspectivas de quem está de fora. Uma amálgama de materiais, vindos daqui e dali, que vão pintando o retrato de quem somos para nós.
Há quem passe uma vida inteira com essa primeira pintura em mente. A vida corre sem grandes surpresas portanto essa ideia primária nunca é posta à prova mantendo-se praticamente inalterada ao longo do percurso. Mas julgo serem casos raros. A maioria de nós vê-se a braços com mudanças, mais ou menos radicais, com reviravoltas, acontecimentos inesperados, bons ou maus, que nos fazem sentir de forma diferente, provocam reacções, posturas que não conheciamos antes e obrigam-nos a repensar a construção, a ir mais fundo, a tentar comprender o que de novo surge à luz do que sabiamos antes. Obriga-nos a ver-nos por outros olhos, perceber que há mais para além do primeiro desenho. E que há diferente.
E aqui surge a necessidade de reavaliação, reavalização do "eu", tarefa difícil, dolorosa... Porque, inevitavelmente, começamos a pôr tudo em causa, começamos a acreditar que criámos uma fachada de nós próprios, para nós e para os outros, que não é real, que não espelha o que somos de facto. Ficamos sem saber, por isso, em que acreditar... "quem sou eu afinal?" Os alicerces mais básicos parecem ser deitados por terra deixando-nos sem chão. Vai-se o, até então, natural conhecimento e reconhecimento do terreno e com este vai-se a confiança, a estabilidade, a segurança... Sentimos que afinal não nos conhecemos de todo porque nos vemos em lugares onde nunca tinhamos estado, onde não sabiamos sequer que poderiamos ir parar e, como tal, damos por nós a ter reacções e sentimentos diferentes do que estávamos habituados a ver como nossos. E a não conseguir controlar nada. Não conhecemos o veneno logo não temos antídoto. Tornámo-nos imprevisíveis para nós próprios e, acima de tudo, o sentimento mais avassalador de todos, é que nos desconhecemos. Simplesmente, desconhecemo-nos. De repente, olhamos e não sabemos bem quem somos e deixamos de saber como lidar com a nossa vida, com os outros, com o nosso mundo porque tudo isto foi construído com base na pintura anterior. De repente, damos conta que essa pintura está deslocada da realidade, já não se encaixa de forma perfeita na imagem criada por nós e ficamos sem saber o que dela continua a fazer sentido, o que dela se perdeu irremediavelmente. Sentimo-nos perdidos, sem bússola orientadora, órfãos de nós, deixamos de saber o que pensar sobre a nossa pessoa, deixamos de saber como nos posicionar, em suma, deixamos de nos fazer sentido.
E durante muito tempo, muito suor e muitas lágrimas, pairamos por aí, a tentar encontrar um rumo para esta nova personagem que agora teima em ocupar o nosso espaço e que parece ter aparecido para nos substituir.
Mas há um dia, um dia muito importante, não necessariamente só composto por 24 horas, em que percebemos que não nos perdemos, que continuamos a ser nós. A essência, o âmago são os mesmos, exactamente os mesmos. A base somos nós como nos conheciamos. Voltamos a reconhecer o nosso riso, o nosso jeito, a nossa cara ao espelho, voltamos a sentir a nossa personalidade a pulsar e a manifestar-se como antes. Abraçamos de volta o sentido de humor sempre particular, damos novamente a mão ao simples olhar em redor que é tão nosso. Lentamente, vamos retomando hábitos, posturas e sentimentos. Lentamente, sentimos que voltámos, ou ainda melhor, que nunca nos fomos embora. E damos conta que o que mudou, na verdade, se reveste, acima de tudo, de um aprofundamento do que já existia, uma viagem a outros níveis. Fomos mais além, explorámos caminhos nossos mas diferentes, nunca antes explorados, pusemos em causa conceitos, crenças, valores, princípios para descobrir que eles se mantêm cá dentro mas pintam-se agora de uma cor mais rica, mais complexa. Fomos mais fundo, ao fundo de nós mesmos e conseguimos trazer à tona mais traços que nos completam, que nos compõem, que nos dão mais corpo. Vemos assim que o velho desenho não foi rasgado e deitado fora como algo que já não faz sentido mas sim expandido com um maior conhecimento, acrescentado com o que em nós estava escondido, adormecido, com o que nem sabiamos que existia, com muitos algos em que nunca tinhamos pensado. Tornou-se um desenho mais intricado. Somos nós à mesma mas mais completos. Somos nós mas mais nós.
Será a isto a que se chama evoluir como ser humano? Gostaria de acreditar que sim.