quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Carta III

Não te escrevo há algum tempo. Mas nós falamos todos os dias, não é? Quer dizer, eu falo, não sei se me ouves... Sabes, tenho dificuldade em perceber os sinais. Esforço-me, olho atentamente, vejo o vento a bater nas folhas mas as inerências metereológicas confundem-me e puxam-me para terra. Talvez o mal seja meu, talvez me falte aquele bocadinho de abstração, de loucura, de entrega que permite ver mais além. Talvez. Mas, descansa, vou continuar a tentar porque, às vezes, sem que dê conta, sinto qualquer coisa diferente. Pode ser a minha imaginação, sim, claro que pode, e se estivesses aqui dirias exactamente isso, com o teu sorriso divertido e descrente, mas estanto aí agora... será que vês de maneira diferente? Bom, eu só sei que por vezes o vento não se comporta da mesma forma. Sei desde o dia em que te foste embora porque nesse mesmo dia, um dia quente e seco, sem uma brisa que fosse, o vento apareceu do nada para me falar. E quando comecei a andar, quando finalmente saí daquele jardim que acolheu as minhas lágrimas e deixei de ter árvores à minha volta, ele manifestou-se atravessando um espanta espíritos, pendurado algures, levando o seu som a acompanhar os meus passos. E no outro dia, a mesma coisa, um espanta espíritos a chamar-me sem que nada o previsse. Coincidências? Talvez. Talvez não.

A nossa pessoa em comum anda andando também, tal como eu. Mas somos diferentes, como sabes, e os nossos momentos por vezes não coincidem. Mas lá vamos, numa nova maneira, diferente da que havia, mas vamos. Porque tudo isto é novo também para as duas, para as duas que somos uma com a outra. Os traços que contornam a nossa relação mudaram e abraçam-nos de forma distinta. E nós andamos a tentar endireitarmo-nos jogando com estas novas peças a ver qual será o resultado final. É... diferente. Talvez venha a ser melhor, quem sabe.

Lutamos com as cores, sabes? Com as cores, imagina. As cores dela, as minhas, e eu a puxar sempre mais um bocadinho para que ela abra mais o leque, para que não se deixe enterrar na escuridão mortiça de tecidos, sentimentos, olhares e marcas do rosto. Às vezes consigo, outras não. E por outro lado, tenho eu que lutar para não me deixar cair nas profundezas do seu pensamento que, como bem sabes, consegue ter força para arrastar qualquer um. Às vezes consigo, outras não.

Mas e tu, perguntas-me tu. E tu como vais? Eu? Não sei. Há mesmo muita coisa que não sei e não sei se vou descobrir tão cedo. Mas a diferença é que deixei de me importar. Acho que, finalmente, grande parte de mim se deixou ir e tenta abraçar o que vai surgindo sem me atirar mais contra as grades da gaiola (lembras-te do tal pássaro?). Se desisti? Sim, em parte. Desisti de tentar controlar o que não é controlável. Acho, modéstia à parte, que até fui inteligente. E de resto, não faço planos. Não quero, não preciso deles, já me provaram que não são de fiar por isso eles que venham se quiserem e que me tentem convencer como conseguirem. Depois logo vejo se os aceito.

Mas fui descobrindo outras coisas. Descobri muito sobre mim e sobre o mundo que me rodeia, o meu pequeno mundo. E começo a pensar que talvez tenha havido aqui mão do universo no meu pequeno, tão pequeno mundo. Olho para trás e algo que me diz que tudo isto já estava nos planos, que teria que passar pelo caminho que se me apresentou à frente, quer quisesse, quer não. Era inevitável. E por isso, para me ajudar, ao longo da estrada foram logo colocados reforços para que tivesse onde me segurar quando precisasse, onde encontrasse quem estivesse disposto a dar-me um empurrão quando as forças se esvaíssem, mãos entrelaçadas a formar um cordão que me impedisse de resvalar e que me desse encosto quando precisasse descansar. Será que também há mão tua aqui? Gostava de pensar que sim, que me proteges onde quer que estejas. E não importa quem teve esta ideia, não é? O que importa é que talvez não estivesse aqui, neste lugar interno onde me encontro, se tivesse avançado para essa travessia rochosa sozinha.

Mas continuo a ter medo. Lembras-te do medo que tinhas de morrer? Dizias que a morte era um autêntico ultraje. E como não acreditavas em mais nada para além dela sentias que era detestável, ultrajante, inaceitável que a vida humana acabasse facilmente, num segundo, como se não valesse nada. "Simplesmente deixa de ser e pronto, é isto", dizias tu abanando a cabeça com revolta. Pois, eu tenho esse medo. Porque, por agora, vejo muito pouco à minha frente e não consigo vislumbrar o que o destino me reserva. Será que vou simplesmente deixar de ser?

E tenho outros medos, medos menos transcendentes, mais terrenos. Aqueles que tu, certamente, tens a sorte de já não ter. Sim, é sorte, acredita que é... (sorrio porque consigo adivinhar que não aches sorte nenhuma esta coisa de já não estar aqui a fazer o que te apetece, de te terem enviado para outro lado sem tu teres tido uma palavra a dizer. Consigo até imaginar o quanto tens refilado com os deuses por causa disso...).

Dou por mim a citar-te muitas vezes, sabias? Acho que, até agora, nunca tinha realmente entendido o quanto tenho de ti em mim. Para quase tudo, dou-te como exemplo, e lembro-me tão nitidamente de reacções, expressões, olhares, tons de voz que parece que não te foste embora neste dia, há tempos atrás. A tia M. diz que não, disse logo no início que irias estar sempre comigo. E é verdade, realmente. Estás comigo nos ensinamentos que me deixaste, nas palavras que me repetiste, em tudo o que me deste de ti. E eu absorvi muito, tanto que nem eu sabia. E estás comigo na minha cara também, onde te reconheço cada vez mais, na minha maneira de ser tão idêntica que me faz até rir. Ainda ontem ri sozinha porque me vi a fazer algo que tu fazias, sem pensar, algo meu, que vejo que também era teu.

Estás aqui, claro que estás. Estás comigo, como sempre. E por isso... vamos falando, com cartas ou sem elas, vamos sempre falando.

Sem comentários: