terça-feira, abril 20, 2010

Carta IV

Escrevo-te hoje e é de propósito. Porque hoje é um dia dos nossos, porque hoje já teriamos falado muitas vezes para combinar onde, o quê, quem compra. Porque hoje seria dia de reunirmos na nossa tradição, ao jantar, como sempre fizemos, num restaurante "diferente para ficarmos a conhecer uma coisa nova". Não vai ser assim, hoje. Já não é assim. Porque não combinámos, porque não falámos as vezes todas que tinhamos que falar. Porque não falámos nenhuma vez. Mas será o que pudermos, sim, porque sei que também tu queres manter esta vela acesa. E por isso, nós iremos cumprir a tradição tão nossa e iremos comemorar. E tu vais connosco, certamente.

Muitas coisas me foram acontecendo ao longo deste tempo. Muitas coisas que vêm com o calendário, o tempo interno e todos os tempos que passam por nós. Mas é estranho pensar nesses tempos, sabes? Porque foram cheios de tanta coisa, tanta coisa diferente mas, em paralelo, vazios, vazios de ti. De qualquer forma, algumas coisas mudaram desde a última carta (ou sei lá desde quando). Dizem que o meu brilho voltou, consegues vê-lo tu também? Não o reconheço ainda mas os meus olhos nunca viram muito bem o que emano. Talvez o vejas também, era bom se o visses. Mas sim, reconheço algumas mudanças, sinto algumas mudanças. Ainda ténues, é certo, mas consigo sentir agora que a minha visão do que está à minha frente, daquilo com que tenho que lidar mudou um pouco. A par das crenças desfeitas, a par das perdas, a par da falta de rumo, dou por mim, de vez em quando, a olhar o futuro incerto não só com angústia. Consigo ver agora o outro lado da incerteza, consigo olhar para ela e vê-la também como uma tela em branco onde eu posso pintar o que eu quiser. Não é sempre, nem sequer é frequente mas, de vez em quando acontece. Quem sabe esta visão mais... positiva, talvez, comece a tornar-se cada vez mais minha.

Mas falámos no outro dia, não foi? Sim, falámos através de outras pessoas, desconhecidas. Falei contigo e tu enviaste-as até mim. Trouxeram-me a tua mensagem, acredita. Senti-te ali comigo, percebi o que estavas a fazer. Talvez soubesses o que aconteceria se pegasse no carro naquela altura, talvez simplesmente achasse que precisava que me desses a mão por um bocadinho. E deste.

E, finalmente, trouxe o teu piano para minha casa. A nossa pessoa em comum pediu-me, disse que era o que fazia sentido e eu lá o fiz. Já tinha pensado muitas vezes em trazê-lo mas ele é teu, para mim é teu, e não consegui ser eu a propor a sua vinda, a saída daquela casa. Assim, confio que também neste caso tenhas falado através dela. Estava na altura de ser eu a albergá-lo, ao teu piano, estava na altura de ser tocado pelas minhas mãos. Mas ainda não consegui, sabes? Ainda não consegui tocar-lhe de modo a produzir som, aquele som. Veio com as pautas escritas por ti, com a tua letra, veio inteiro, com os teus ensinamentos mas eu não estou inteira. E não sei, não sei como voltar a ele, não sei. Porque não estás lá para me guiar e eu não sei fazê-lo sem ti. Porque o pouco que consegui aprender foi pelas tuas mãos, pela tua voz e não aprendi o suficiente para voar sozinha. E aquelas notas tiradas daquelas teclas não me soam ao mesmo, sabes, parecem também elas estranhar a tua ausência, parecem perceber que estão num lugar estranho, pouco familiar. Saiem tímidas, cautelosas, indecisas. Ainda não lhes toquei mais, talvez ainda não seja o momento certo, talvez elas tenham que se habituar primeiro à minha presença emprestada, talvez eu tenha que as olhar com outros olhos.

De resto... vai-se andando (e lá estou eu...). Ou, como me disse uma amiga que não gosta muito desta expressão, "estou a andar". E sim, estou a andar. (É um tempo verbal mais assertivo, mais forte, parece, acho que vou adoptá-lo). Devagar, devagarinho mas a andar. E como sempre, conto contigo aqui, a andar comigo. Agora acredito.

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