quarta-feira, abril 07, 2010

Em branco

A carta foi escrita, mas não foi A carta, não foi. Devia ter sido mas não foi porque A carta tem que se escrever com as letras de dentro e uma grande parte delas ainda não quer sair e expôr-se no papel. Ficam aqui mais um bocadinho, até chegar a hora certa, ficam aqui, umas soltas, umas entrelaçadas, algumas escondidas atrás de outras, ficam aqui até que faça sentido. Mas quando saírem, quando seguirem a sua vida fora de mim, não vão todas. Porque há umas de pedra e cal, sossegadas no seu canto, que fazem parte da mobília, que impregnaram as células tornando-se parte delas. Essas ficam comigo para sempre. E a almofada às riscas escondida, tapada por muitas outras, todas brancas, porque assim decidi. "Para ser leve", disse eu, "para ser bonito, para que seja leve quando olho para lá". Porque tenho ainda vontade de poder olhar para lá e tenho vontade que seja bonito, calmo, pacífico, porque sei que tenho que fazer a almofada às riscas desaparecer mas não quero que ela sufoque sob o peso do preto, do cinzento, não. Quero que se sinta bem e quero sentir-me bem ao ver o que a cobre, ao imaginá-la lá, confortável, leve, sempre leve... e em paz. E a explicação racional para as acções, para as reacções, a tentativa de explicação porque, convenhamos, só nos compete adivinhar, e a sensação boa que fica quando vejo que pode ser que não seja só por não ser digna de razões. Porque não ser digna de razões amolga por dentro, porque ser objecto inanimado mata o espírito, torna-nos inanimados, de facto. E a culpabilidade que assume proporções catastróficas, porque é elevada ao seu expoente máximo e porque a essa bagagem juntam-se também culpas que não são minhas e não tenho as costas tão largas assim. E a cabeça a acenar que sim, que já chega, que não sou omnipotente e por isso só devo assumir o que é meu, o negro mas também o branco, os coloridos, as minhas cores, as cores que sei que tenho. E parar também, parar de pedir desculpas pela minha humanidade porque afinal é ela, a minha humanidade, que faz de mim ser que quer viver mais do que sobreviver.

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