quarta-feira, julho 14, 2010

Considerandos

Depois de cortada, queimada, raspada, cosida, de volta a casa com sono... dormi duas horas sem sequer dar conta. Bom, muito bom... No outro dia ouvi "Ai é para a semana? E não dizias nada?? Queres que vá contigo?? Caramba, devias ser mais maricas nestas coisas e aproveitar o mimo extra!". Pois, talvez... Mas o mimo extra acabou por vir, em forma de chocolate com passas e avelãs. Bom, muito bom... Concluo assim que gosto de pequenas cirurgias e que elas podem ser incluídas com distinção na lista de "coisas que até não me importo de fazer". Fazem-me dormir e têm o dom de cutucar o sentimentalismo de quem me rodeia o que se pode sempre traduzir em prendas, mais ou menos doces. Gosto.

Acordei, não fresca, com vontade de dormir mais ainda. Controlei-me porque ainda tinha a noite pela frente e nada como o conforto dos lençóis fresquinhos e de mais mimo... Mas os sonhos, os sonhos... ontem andei com eles agarrados, como almas penadas, porque falhei o ritual de separação de mundos. E assim, quando voltei a deitar a cabeça na almofada, foi com rapidez que me levaram de volta. Os mesmos, sempre os mesmos. Enfim, nem a sonhar consigo ser original. Sonhos do antes e do depois, sonhos do que não existe, sonhos que talvez tenham a pretensão de representar o que a realidade não me entrega. Talvez tenham secretamente essa função... se não vivo, sonho para ver como seria, para viver o que me falta e sentir o que essa realidade sonhada tem para me dizer.

Mas, depois, de volta à vida real, áquela que nasce todos os dias, que todos os dias se apresenta ao serviço. E caio em mim e pergunto: "onde está aquela pessoa atenta, curiosa pelas coisas do mundo, interessada, com vivacidade e energia, com brilho nos olhos e gosto e vontade de fazer milhentas coisas, tantas coisas que uma vida só não deve chegar? Onde está?" Está aqui, sim, está aqui mas tem medo. Não medo do novo ou do desconhecido mas medo de que, o que venha, apague, substitua, ocupe o lugar do "eu" antigo, corte definitivamente os fios que me ligam a mim, a quem eu fui. Não quero, não quero perder mais nada. Agarro-me com todas as forças para não perder mais nada. "Perder-se-á o que tiver que ser, o que não tiver que ser, fica", dirão alguns. Mas uma controladora como eu não lida bem com "o que tiver que ser", não se deixa quieta a ver o destino agir como lhe dá na gana, a decidir e organizar, a cortar laços e a entrelaçar outros sem ter uma palavra a dizer. Não! E assim estou, agarrada às pedras, a lutar para não me deixar levar pela corrente porque não quero perder mais nada. Alguns, muitos, disseram e dirão mais milhentas vezes, "Vive! Vive!!! Tudo coexistirá dentro de ti, se assim tiver que ser." Mais uma vez, "se assim tiver que ser", mais uma vez, não gosto.

Observo-me ao espelho e, pela primeira vez em toda a minha vida, aprecio o que vejo. Observo os meus contornos, a minha pele, a minha forma e não vejo mais a adolescente complexada que evitava a todo o custo mostrar-se. Não vejo mais aquele corpo com o qual nunca me senti confortável por achar grotesco com todos os seus defeitos, para mim, inultrapassáveis. Estão lá à mesma, é certo, mas são mais humanos aos meus olhos. Agora consigo ver beleza para além deles. Consigo encontrar brilho na minha pele clara, para mim sempre demasiado clara, nos sinais e marcas do tempo e não só, para mim sempre demais, no volume onde ele está, que para mim não devia existir.

Cresci, eu acho, cresci mais nestes últimos meses no que na minha vida toda. Sei que sou hoje mais equilibrada, madura, sensata, tolerante, humana do que alguma vez fui. Sim, humana mas, acima de tudo, aceitando a minha humanidade, as minhas falhas e erros, as minhas culpas e perdões, a minha fealdade mas também a minha beleza, como pessoa, como amiga, como filha, como mulher. Só que, em paralelo, também houve um quinhão amargo, que nunca mereceu muito a minha confiança antes, e que hoje me vem dar razão. O quinhão negro de mim que parece ter-se refinado com requintes; o quinhão da frieza e dos muros e guardas e defesas; o quinhão da desconfiança, da ausência de fé no mundo, nos outros, em mim; o quinhão triste, triste e solitário, triste e eremita, triste e duro que não se deixa ultrapassar determinado limite, que não se deixa tocar e que não toca em ninguém; o quinhão que não vive. Olho-me ao espelho e vejo beleza e fealdade, brilho e escuridão.

Mais uma vez, o tremor. Todos os terminais nervosos a serem varridos por um onda quente que dói, que queima. "Todos temos um intervalo de tolerância. O seu foi largamente ultrapassado.", ouvi eu no outro dia. E por isso, sabendo o que é transbordar, o corpo reage impulsivamente, tenta prever e proteger-se, emana calor, activa todos os sentidos e prepara-se assim para o embate. Calma, tem calma, um dia vai passar.

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