Muitas vezes te assaltou o espírito como sendo a única solução. Muitas vezes, demasiadas vezes. E eram o corpo e a mente que a pediam, e eram o corpo e a mente que a desejavam. Assim que a vida fazia uma pausa e te deixava entregue a ti própria, sem distracções, os pedidos aumentavam de tom, apertavam o peito, faziam-te rogar, como se de uma dádiva se tratasse. Mas houve sempre alguns olhares que não podias esquecer e que te chamavam à terra, te prendiam ao chão. Mas mesmo assim, chegaste até a imaginar como seria, como conduzirias o processo e o que esperavas ouvir depois, chegaste a ter tudo bastante bem planeado porque fizeste muitos rascunhos que te permitiram aprimorar a versão final. Ou quase toda. Faltava um único parágrafo que nunca foi escrito porque os olhares, os tais olhares, não deixaram. De cada vez que te concentravas, eles apareciam como borrachas e apagavam essas últimas linhas. De modo que pedias um pedido incompleto, na esperança que os céus ou um milagre o pudesse finalizar.
Com o tempo, os momentos entregues a ti própria começaram a encher-se também de outras coisas. No início, muito a medo, pequeninas e entrando com pezinhos de lã, e com elas acabaram por vir o vento, os risos, o sol, e a angústia começou a perder terreno, a resignar-se a um canto, a não ocupar o espaço todo. E as tuas preces foram sendo substituídas por alguma esperança que trazem os dias seguintes. O equilíbrio ainda é difícil e nem todos os dias são bons dias para se estar em cima do muro mas começa-te a ser mais fácil controlar os músculos e impregná-los de força.
Só que, e há sempre um "só que", a consciência que tens de ti própria não te deixa levar ao engano e tu sabes o que és, quem és, e sabes-te apontar bem o dedo. A palavra "inconformada" vem-te à cabeça vezes demais e lembras-te bem do dia em que a utilizaram para te descrever e em que, pela primeira vez, soubeste que mais alguém conseguia ver o seu lado negro. E tu navegas por ele, pelos seus fluxos de energia, sabendo bem como ele te consegue mover, dominar. A luta, até por causa perdidas, é inerente a ti, os ventos e tempestades não te metem medo mas sabes que és como o tal pássaro que se atira às grades, o tal pássaro que não aceita a gaiola imposta, por mais que se fira. E feres-te, muito. Tiras de ti tudo o que podes, empregas todas as tuas forças mas acabas por cair, cansada, não conseguindo mais erguer-te. Até recuperar energias, tentar outra vez e iniciar novo ciclo. Autodestrutivo. Em paralelo, ergues a barreira de aço à tua volta, barreira essa feita de micro furos que levam a que as energias circulem mas só num sentido. A sua forma afunilada deixa sair o desespero, o pulso, a gana, mas não permite que entre a realidade. Os factos que tens que assimilar, fazer com que se fundam com o teu ser, circulam à tua volta em redemoínhos mas tu estás protegida por trás da barreira e não os deixas entrar. Desta forma, não deixas que eles se ajustem, se moldem a ti, não os integras na tua vida, não os deixas correr na tua corrente sanguínea, não os assumes como teus, não os aceitas. E assim, a realidade apresenta-se-te sempre como irreal. E assim, olhas para ela como se fosse um filme, um sonho do qual um dia vais acordar.
E olhas para o calendário e vês... os mesmos dias... Nestes dias, voltaste, habitas aquelas quatro paredes e os dias são os mesmos e por um pouco nem reparavas na coincidência. Ou não. Nestes dias, voltas, como voltaste nessa altura, nesses dias. E eles confirmam-te o que queres fingir que não existe.
Mas tudo passa, dizem-te, e tu esperas que passe. Tu esperas que haja realmente um outro lado dos pesadelos. Gritas para dentro, questionas, desiludes-te, choras, sentes raiva de ti, sentes tanto e tanta coisa que parece que vais morrer, mas esperas. Esperas pelo dia em que as palavras, os olhares, a realidade não te toquem mais desta forma desumana. Esperas pelo dia em que deites a cabeça na almofada e as palavras, os olhares, a realidade te façam sorrir.
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