terça-feira, fevereiro 10, 2009

IPO

Passam por mim muitas vezes. As caras, o momento em que entraram na minha vida, o momento em que as suas histórias se entrelaçaram na minha e passaram a fazer parte dela, a compô-la, a enfeitá-la, como personagens secundárias num filme, num determinado cenário. Não são a peça central, não são o motor da narrativa mas têm vida, peso, ocupam lugar e, muitas vezes, "roubam" a cena. Compõem as minhas memórias porque passaram a fazer parte da minha história e sempre que olho para trás, todos estes rostos aparecem.

O do lado, atarefado, de computador e telemóvel em punho, a gritar ordens e decisões ao telefone, a cama inundada de papéis. A não querer deixar a sua vida de lado só porque está ali. A esforçar-se por manter tudo igual. Talvez porque necessite, talvez porque não saiba fazer de outra forma. O da ponta da sala, sombra do que já foi. Nunca vi os seus olhos, nunca ouvi a sua voz. Farrapo humano que parecia nunca estar consciente. Parecia sim mas nunca soube verdadeiramente, duvido que alguém saiba. Ao lado, alguém a fazer festas na sua cabeça. Provavelmente um irmão, tão parecido que era... a personificar o"antes". Na cama, estava o "depois". No meio da sala, o homem robusto que ninguém imaginaria doente. Calado, sozinho, emigrante retornado após muitos anos, com relações cortadas com a família que deixou em França. Nunca disse o nome de ninguém, nunca deixou que os contactassem. Comia os doces que traziamos a mais já a pensar nele. Morreu como escolheu: sozinho. Em frente, numa primeira fase, o rapazinho cigano. 16 anos e muita alegria ao falar do que iria fazer quando saísse: as festas, as miúdas, as discotecas. E toda a família à roda, a rir com ele. O pai, o mais barulhento, o mais activo, o mais animado, de vez em quando saía do quarto, de sorriso escancarado, falando alto e desculpando-se com algo, para ir chorar baixinho no corredor. Depois, o da máscara de oxigénio. Corpo marcado, pele como uma tela onde se vê pintada toda a história. Olhos brilhantes, vivos, sedentos de mais. Atrás da máscara, presa naquele corpo cada vez mais deformado, uma alma brilha, viva, cheia de energia, a querer sair daquele invólucro para continuar a viver. Mas também manchada de resignação por saber que não havia saída.

E depois a minha história. As conversas infinitas, às vezes sem perceber se estava a ser ouvida, mas continuando sempre porque podia ser que... O esforço para conter as lágrimas. Porque não queria que me visse triste, que me vissem, porque não me achava no direito de estar triste quando, à minha volta, havia gente tão mal, tão pior que eu. O sol lá fora, a vida lá fora que chegavam a ser ofensivos por serem tão desejados e tão inalcançáveis ao mesmo tempo. O cheiro.

A minha história entrelaçada que faz de mim o que sou hoje. Não sei os seus nomes, não conheço o destino da maioria. Sei que, infelizmente, me fizeram acreditar que, afinal, o Inferno existe. É ali.

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