Viajas, sim, continuas a viajar, porque o tempo te leva para a frente. E cada viagem é um dia e cada dia é uma viagem que se inicia de forma diferente, dependendo de como incide a luz na tua cara ao acordar. Por vezes, brindam-te as lágrimas, sem pedir permissão, sem avisar da sua chegada, e correm pela cara livremente ainda nem abriste bem os olhos. Por vezes, nada surge e a urgência prática das coisas mundanas sobrepõe-se comandando o ritmo e a dormência. Por vezes, ainda, a luz bate-te em cheio no coração. Essas são as viagens que mais prometem. Mas não quer dizer que cumpram. E os sonhos ficam ainda um bocadinho, a fazer sala, até que se dissipam completamente sem, nem sempre, deixar rasto. Mas existe uma constância que parece de pedra e cal, uma fenda, algo desmanchado para sempre, que perdeu a sua forma original. Está lá, permanentemente, bem no centro do corpo, aberto de cima a baixo, macerado, doente, buraco que ainda não é cicatriz. Está lá e tu vês e sentes. Vês ao espelho o seu reflexo, na tua cara, nos teus ombros e sentes a sua presença, sabes exactamente onde se encontra até sem ver, de olhos fechados, tacteando com a tua mão que chega lá sem hesitações, ao ponto exacto. Porque ele pulsa, porque se manifesta, porque não deixa esquecer que existe e domina os olhares, as expressões, controla a intensidade do brilho, os gestos, a pele, a voz. E cada viagem tem-no como capitão. E tu sentes-te um mero passageiro no seu barco.
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