É sempre assim. Fico com uma espécie de azia. Mas não daquela que acida o estômago, as entranhas afectadas são outras. E, se a mais comum provoca desconforto e esgares de má disposição física, esta empalicede e baixa os olhos e esmifra o coração iludido porque acha que não pode encolher mais e mesmo assim encolhe. É sempre assim e talvez assim seja para sempre, talvez seja agora parte do meu "show", como dizia a música, talvez se tenha tornado numa característica daquelas que já não são defeito, são feitio. Não gostaria mas, provavelmente, não há como lutar contra isso. Porque o caminho que percorremos tem as suas tintas frescas e quem lá passa acaba por ser por elas manchado. Falava nisso, no outro dia, de como olho e vejo que não há como apagar os borrões que eu antes não tinha e agora tenho. Diz que são de tinta permanente e que já fazem parte do meu retrato, entranharam na tela e secaram, e que não há mestre que os possa limpar.
Pergunto-me como a lucidez parece tanta para umas coisas e tão pouca para outras... e não só a minha...
Mas acabámos por concluir que as palavras têm um peso muito maior do que gostamos de lhes atribuir. E, ao contrário do que poderia parecer mais lógico, aquelas que não foram ditas e aquelas que não foram ouvidas são as que pesam mais. As que não foram ditas carregam nos ombros impaciência, contenção forçada e, amargas de frustração, acabam por apodrecer na sala de espera. Mas não desaparecem, ficam ali, a ocupar lugar, inúteis, estéreis, peso morto e ácido, água estagnada das coisas que deviam ter sido e nunca foram. E as outras, as que não foram ouvidas, deixam o seu espaço, o que lhes estava reservado, oco, deserto, sem vida, ecoando e não deixando esquecer a sua ausência, os pedaços que faltam. Mas é tarde demais, muito tarde. O mundo já girou muito e passou o tempo delas, não há como voltar atrás. Assim ficarão, portanto, as presentes e as ausentes, a magoar com a sua presença e com a sua ausência. E a fazer parte do meu "show"...
E, de novo, as voltas que parecem não cessar. Acho que o bilhete que comprei não era para tanto... enganaram-se, talvez, a montanha russa continua a funcionar, não há ninguém para parar o mecanismo e eu não posso saltar do sítio onde estou. Ainda é muito alto... Diriam "então, já que é assim, aproveita a viagem!". Mas já me apetece voltar para casa, sabem? Já estou cansada, tonta, já chega de rodopios, já chega... quero voltar para o meu canto, seja ele qual for, mas que tenha a tabuleta a dizer "Meu" e pronto, onde esteja o meu sofá, os meus bichos, o meu chá e os meus livros e... amor, muito amor. Para dar e receber e para adormecer nos seus braços. Onde cheire a bolos acabados de sair do forno, onde haja risos e claridade e música. Onde eu esteja, mas mesmo eu, eu a sério, eu completa.
Deparo-me com grandes disparidades no que diz respeito à justiça. A justiça que falha, a justiça que não foi feita, que não me foi feita. E quanto a isso, resta-me aceitar que ela é apenas a "minha" injustiça, poderá não ser de mais ninguém, poderá até ser catalogada de "justiça", afinal. Estranho mundo, este, estranho mundo, o meu.
Olho para trás e comparo. E vejo um "antes" e um "depois" mas também vejo um "depois de tudo isso", que é onde estou agora. Olho para trás e sorrio ao mesmo tempo que choro. Olho para trás e não me reconheço mas também me sinto eu. Olho agora e estranho o resultado da fusão. Olho agora e espero que ainda esteja a ver um rascunho, que a versão final ainda não esteja pronta, que ainda haja mais para escrever.
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