terça-feira, outubro 27, 2009

Carta II

Olá. Cá estou eu outra vez. Desta vez sem nada de especial para contar, a vida continua a andar para a frente e eu vou a reboque dela. É assim, é o que tem que ser.

Mas ando-me a esforçar para fazer arrumações, sabes? Ando mesmo. Porque só com as coisas arrumadas é que se vê bem o que se tem, o que se quer ter, o que se quer encontrar, o que se perdeu, o que tem e o que não tem remédio. E só a partir daí, só a partir desse inventário, se pode decidir o que fazer e fazê-lo. Ando a arrumar mas muitas vezes não é fácil. O meu feitio não ajuda, sabes... debato-me entre a realidade à minha frente e a realidade que quero para mim. E muitas vezes elas não se colam e eu fico irritada com isso. Porque não sou conformada, nunca fui, e sou teimosa, sempre fui. E lá está o teu sorriso  meio orgulhoso a dizer "és, sempre disse que és, talvez saias um bocadinho a mim...".

Mas tenho que arrumar. E, acima de tudo, anular, livrar-me de algumas coisas, as coisas que me fazem mal, impregnadas de energia negativa (e agora um olhar condescendente, de quem não acredita em nada destas coisas, e um sorriso como quem diz "mas vá, pronto, conta lá as tuas teorias"). Por isso, ando-me também a esforçar para só guardar memórias boas. As tuas memórias boas. Quero só pensar em ti a sorrir, a dizer alguma piada, a comer doces com satisfação, a conversar comigo. Tenho a certeza que hoje tu só és memórias boas, mais nada. Não levaste nada de mau contigo. E quero apagar as imagens daquele hospital, quero deixar de me lembrar do cheiro, das senhas de visita, da cara dos porteiros e das enfermeiras, quero esquecer o aspecto do corredor e o que sentia ao percorrê-lo até chegar à tua cama. Quero deixar de saber como se lê o monitor e os níveis de oxigénio e de te ver ali. Quero apagar tudo... Não. Tudo não. Quero ficar com a última imagem, a daquele dia em que te fui ajudar com o almoço e que, ao vir-me embora, algo me fez olhar para trás. Fiquei à porta da enfermaria, a ver-te lá ao fundo enquanto respondias à enfermeira "Sim, estou bem, obrigado. Comi muito bem!". Fizeste-me sorrir e foi com esse sorriso que saí de lá. E este sorriso meu foi a última coisa que me ofereceste. Portanto, essa guardo-a comigo.

Quero também esquecer o resto, o que veio depois. Porque tu já não estavas lá, não eras tu quem eu via. Lembro-me que me despedi, naquela noite, quando só estava eu. Olhei-te e não me lembro do que disse mas lembro-me que, a dada altura, fugi. Para me encontrar contigo num outro lugar porque não eras tu que estavas ali.

O Natal está aí à porta, já viste? Deves estar a pensar "que exagero! ainda falta tanto tempo, as pessoas parece que ficam doidas...!". Nunca achaste muita piada a esta época, eu sei, tinhas as tuas razões. Mas eu gosto muito do Natal, tu sabes, e por isso começo a pensar nele logo que sinto um bocadinho de frio. Manias... Não sei como este Natal vai ser, não sei como vai ser quando realmente chegar mas, para já, sei que quero ver as luzes. Lembras-te que combinámos várias vezes ver as luzes? Nunca chegámos a ver todas mas quero ver se este ano não falho. Para tu as veres através dos meus olhos. Acho que não vou fazer árvore e essas coisas, acho que não me vai saber bem mas isso é outra história. O Natal há-de vir e eu vou vivê-lo como puder.

A nossa pessoa em comum lá anda. Tem andando melhor, eu acho, talvez mais habituada à ideia de estar sem ti. E o gatinho novo sempre ajuda com os disparates que faz e que a fazem rir. Falamos todos os dias como nunca falámos. Falamos como eu falava contigo, todos os dias, sobre o que tiver que ser. Mas falta algo, a mim e a ela. Falta algo que não depende de nós.

Deixei de rezar, sabes? Talvez te espantes por saberes agora que rezava, nunca fomos muito virados para esse tipo de coisas. Mas sim, rezava, com as palavras que me ensinaram, porque não sei outras. Rezava a Deus ou aos deuses ou a quem me ouvisse e pudesse ajudar. E pedia por ti. Sempre por ti, antes de adormecer. Tentava visualizar alguém a ouvir-me atentamente, começava por agradecer o que tinha de bom e depois pedia, sempre desculpando-me por estar a ocupar tempo a quem tem tantas pessoas para ouvir, pessoas muito mais necessitadas, muito mais infelizes. Pedia esclarecendo que não queria que pensasse em mim, que eu cá me arranjava e que só tinha um pedido, um único. Tu. E imaginava-te numa bolha, leve, límpida, confortável mas que te protegia de tudo o que viesse do exterior. E adormecia em paz, sentindo que talvez tivesse sido ouvida.

Deixei de rezar. Não há nada que queira pedir. Tudo hoje me parece tão menor... "podes pedir por ti", és capaz de pensar tu, "podias pedir felicidade". Podia, sim mas não o faço. Não acho que valha a pena. O que tiver que ser, será.

Espero que estejas bem. Acredito que estás. Porque estás acima destas coisas todas, das arrelias e confusões, dos dias menos bons, das desilusões, das tristezas. E não te preocupes comigo, está bem? Sempre me afligiu que te preocupasses comigo... Quero que estejas bem, em paz e quero que saibas que eu sei que me vês, que me sentes e lês as minhas cartas. As nossas cartas. Hei-de voltar a escrever. Até lá, vamos falando através das pequenas coisas. E eu prometo, vou tentar estar sempre atenta à espera de te ouvir.

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